Intervenção de Miguel Cardina no Comício Levar a País a Sério, de 24 de junho em Coimbra
Muito boa tarde. Em nome do Bloco de Esquerda de Coimbra quero dar-vos as boas vindas a este comício de início de Verão.
Começámos com a música e com as palavras do Luca Argel e isso não foi coincidência. Para nós, a cultura não é uma flor na lapela, não é entretenimento para as horas vagas, não é um passatempo para as noites de insónia ou para as tardes de muito calor.
A cultura é trabalho e quem a faz e quem a possibilita deve ser considerado nessa exata medida: como trabalhador e trabalhadora da cultura. Precisamos do teatro e do cinema, da dança e da pintura, da literatura e da música, porque a cultura abre-nos horizontes, interpela-nos, ensina-nos a ver os avessos do mundo.
Esses avessos do mundo onde, como canta o Luca Argel, temos governantes portugueses que continuam a recusar olhar de frente o passado colonial e os seus legados, presos a um imaginário glorificador das descobertas. E que omite, aliás, os seus efeitos no presente: o racismo, a xenofobia, as segregações visíveis e invisíveis, a mitificação nacionalista da história.
Realidades do avesso são também as cidades que vão “virar só hotel para turista”, onde as pessoas gastam cada vez mais para poderem viver dignamente e onde a especulação imobiliária ou o abandono se sobrepõe à capacidade de construir territórios vivos e inclusivos.
A propósito disso, queria contar-vos uma pequena história coimbrã.
Há mais de trinta anos que, no coração do centro histórico de Coimbra, está abandonado o Teatro Sousa Bastos. Durante anos, um movimento cívico procurou que o espaço fosse recuperado e tivesse uma utilização social. Nem os executivos municipais do PS, nem os executivos municipais da direita, permitiram uma solução adequada para aquele espaço. Há largos anos, a Câmara fez um acordo com o novo proprietário para que Sousa Bastos acolhesse mais de 30 fogos habitacionais, destinados a estudantes, em troca da cedência de uma pequena área cultural.
Trinta anos depois, o Sousa Bastos continua abandonado. Nos últimos dias, tivemos notícia de que a Câmara Municipal pondera tomar posse administrativa do espaço. Essa resposta só peca por tardia. Sim, é necessário terminar com esse atentado à segurança e à salubridade, que é também um triste retrato da inércia dos poderes municipais.
Mas não, isso não basta. É necessário recusar a lógica especulativa que lhe está por detrás – seja pela construção imediata, seja pela manutenção de um ativo imobiliário parado para rentabilização futura. É necessário incluir o Teatro Sousa Bastos numa dinâmica de mudança da Alta. É preciso transformar aquele espaço num local de cultura e associativismo e num contraponto à dinâmica de turistificação daquela área. O que aconteceu com o Sousa Bastos – e o que pode vir a acontecer com Casa da Escrita, que por estes dias também foi alvo de notícias preocupantes – é um retrato da Coimbra que não queremos. Mas também da Coimbra que temos de conseguir imaginar e concretizar.
Não é só à escala local que vemos esse desencontro entre promessas falhadas e as necessidades das populações. Esta semana mesmo, o governo e o Partido Socialista respondeu ao Bloco dizendo que tudo estava bem no Serviço Nacional de Saúde porque “ainda se estava a negociar”. Ruturas nos serviços, baixos salários, falta de progressão nas carreiras, quebras significativas na acessibilidade no serviço nacional de saúde, a tudo isto o governo responde: “calma, ainda estamos a negociar”. Mesmo sabendo nós que esse é o discurso de hoje, do ano passado e de há vários anos. Nada mudará sem força política.
Quando o Bloco fala em “levar o país a sério” é disso que está a falar. Levar a sério a saúde ou a educação é respeitar os seus profissionais, é garantir a qualidade e a acessibilidade a esses serviços. Levar a sério a cultura é respeitar quem a faz e democratizar a sua fruição. Levar a sério o território é garantir cidades sustentáveis onde se possa viver e conviver.
Levar o país a sério implica conseguirmos distinguir entre os discursos redondos, maquilhados de boas vontades, e as práticas concretas. Isso vale para Portugal, como vale para os contextos internacionais em que está inserido, desde logo a União Europeia.
Esta semana assinalou-se o Dia Mundial do Refugiado e, se não fosse trágico, pareceria uma piada de mau gosto. Voltamos a ouvir notícias de desastres no Mediterrâneo. Há dias, perto de setecentas pessoas – homens, mulheres e crianças - deixaram a Síria, a Palestina, o Paquistão e o Egito e em busca de uma vida melhor e morreram na costa da Grécia. Ontem era notícia mais um naufrágio, perto de Lampedusa, com dezenas de pessoas a bordo. Não foram casos únicos: o Mediterrâneo tornou-se um imenso cemitério, onde cerca de 3 mil pessoas morrem todos os anos. Também não foram desastres: o nome de políticas erradas que conduzem a mortes evitáveis, é outro. Chame-se crime.
Levar a Europa a sério é isso: não é mobilizar apenas o discurso dos direitos humanos para se apontar o dedo aos ataques ao estado de direito que ocorrem na Hungria. É denunciar firmemente as mortes evitáveis que ocorrem as portas da Europa. Levar o país a sério (este país com uma longuíssima história de emigração) é entender o quanto devemos a quem faz de Portugal um país melhor porque contribuiu com o seu trabalho e faz do país um lugar de confluência de experiências e culturas.
Levar o país a sério é isso: é construir movimentos, é construir resposta política para todas e todos os que, hoje, aqui vivem e trabalham. É esse o povo. E é para essa resposta que temos de conseguir agregar força transformadora, hoje, amanhã e nos próximos tempos. Vamos a isso!