Foi notícia esta semana um relatório da UNICEF sobre o impacto da crise nas crianças portuguesas. O estudo, coordenado por Karin Wall e Ana Nunes de Almeida, intitula-se As Crianças e a Crise em Portugal – Vozes de Crianças, Políticas Públicas e Indicadores Sociais e analisa os efeitos devastadores da crise económica e social na vida dos mais novos. Alguns dados compilados falam por si. Entre 2010 e 2013, o número de casais desempregados inscritos nos Centro de Emprego cresceu 688%. Em 2012, cerca de um quarto das crianças em Portugal vivia em situação de privação material. Entre 2009 e 2012, mais de 500 mil crianças perderam o direito ao Abono de Família.
O relatório também faz uma análise qualitativa de alguns testemunhos de crianças e jovens. Os excertos disponibilizados mostram bem como têm consciência do impacto do desemprego, da pobreza ou das longas jornadas de trabalho nas suas vidas e na dos seus familiares: “eles andam sempre enervados”; “sim, vou deixar de ter internet”; “quando a senhora dizia o preço dos remédios o meu pai ficava assustado”; “alguns [colegas de escola] não devem comer muito, ou mesmo, não devem ter refeições”. São palavras que nos dizem o óbvio. Hoje estamos a criar duas gerações adiadas: a dos pais, a quem impedem o emprego, cortam no salário e limitam o acesso a apoios sociais; e a dos filhos, que vêem seu o quotidiano limitado e as perspetivas de futuro hipotecadas.
Sem mudanças políticas significativas não é provável que este cenário se reverta. O aumento de impostos, a manutenção da taxa de desemprego em níveis insuportáveis, a necessidade de emigrar, a redução do apoio do estado às famílias – enfim, a política de austeridade e os seus efeitos – são a causa imediata do aumento da vulnerabilidade dos mais jovens. E a austeridade ataca com mais força quem está mais frágil: aqueles e aquelas para quem o salário é fundamental; que além disso têm familiares a cargo; e que beneficiaram de políticas públicas que, apesar das suas limitações, contribuíram nas últimas décadas para criar um país com um nível maior de igualdade de oportunidades.
De pouco valem os discursos governativos sobre “os apoios a quem efectivamente precisa”. Ou o desenho propagandístico de “incentivos à natalidade”. A este respeito, aliás, uma das recomendações do relatório soou-me bem mais relevante para que se caminhe nesse sentido: investir em creches e assegurar o acesso gratuito a estes serviços a famílias com baixos rendimentos. A realidade das estruturas para a primeira infância – acesso, preços, propriedade – é muito diferenciada ao longo do país, mas parece-me muito evidente que uma rede pública e não confessional de creches e infantários faria mais pelo estímulo à natalidade - e pelo bem-estar das crianças de hoje - do que toda a boa-vontade junta do governo e dos defensores das políticas de austeridade. É que elas, no fundo, não estão só a dar cabo do presente.