Discurso proferido por Catarina Martins na sessão: "Em defesa da Constituição, da Democracia e do Estado Social".
Boa tarde a todas e a todos!
Gostaria de saudar a organização por esta iniciativa, tão premente e urgente, e agradecer o convite para dizer algumas palavras.
Sou, entre os oradores, a única mulher e a mais nova. Tenho, mais coisa menos coisa, a idade do 25 de Abril, e pude viver a minha vida em liberdade e democracia. Foi um privilégio e é uma responsabilidade. Graças a Abril, vivemos quatro décadas acreditando que teríamos direito e acesso ao trabalho e a uma vida digna para nós e as nossas famílias, que os nossos filhos e filhas poderiam frequentar uma escola pública igual e de qualidade, que a Universidade seria cada vez mais um lugar onde os jovens teriam a formação que garantiria o seu futuro, bem como o desenvolvimento e a prosperidade do país. Acreditávamos no sistema nacional de saúde e na segurança social e no direito a uma velhice tranquila, depois de longos anos de trabalho. Enquanto mulheres, vimos consagrados direitos que nos permitiam acreditar que alcançaríamos a igualdade no trabalho, na participação política, nas funções sociais, a liberdade nas escolhas sobre as nossas vidas e os nossos corpos. Acreditávamos e trabalhávamos para isso, enquanto portugueses e portuguesas, mas também enquanto europeus e europeias. Confiámos numa Europa onde seria possível garantir a vida digna e o bem-estar das pessoas, através de um modelo social e de cidadania mais amplo, num quadro democrático e de solidariedades mais alargado.
É verdade que nunca fomos um país democraticamente perfeito, nem economicamente rico, nem totalmente justo do ponto de vista social. Houve, sempre e infelizmente, desempregados, pobres e excluídos, por um lado, e grandes fortunas por outro; salários baixos; uma justiça ineficiente; corrupção no poder local e central, com redes tentaculares entre os partidos com funções governativas e os interesses económicos nacionais e internacionais, e tantos outros problemas.
Porém, neste país periférico com a sua economia fraca, os indicadores do Trabalho, da Habitação, da Saúde, da Educação, do Ensino Superior, da proteção aos desempregados e aos desprotegidos, o aprofundamento dos direitos das mulheres e das minorias revelavam um caminho talvez demasiado lento, mas ainda assim positivo e, em vários casos, admirável para poucas décadas de democracia. Se a nossa democracia era imperfeita, continuávamos a acreditar que valia a pena votar para que o povo fosse o protagonista das escolhas políticas. Faltava muito para cumprir plenamente Abril, mas acreditávamos que estava ao nosso alcance. Abril permanecia o símbolo de valores inalienáveis e o Norte para o aprofundamento destes valores.
Todavia, a evolução da União Europeia foi desiludindo estas expetativas, substituindo cada vez mais uma Europa democrática e dos valores sociais por uma Europa do dinheiro, dos mercados e da especulação financeira. A anunciada Constituição europeia transformava-se no Tratado a que infelizmente ficou associado o nome de Lisboa. Tornava-se ineludível o domínio global das políticas neoliberais, para as quais a vida humana, digna e decente, nada conta. Também em Portugal o neoliberalismo entrava com a gradual tarefa de desmantelar o que era público e um direito de todos e de todas, para o entregar a alguns poucos, convertido em negócio e fonte de dividendos. Também em Portugal, a obscura entidade a que se chamou mercados começou a exercer um domínio omnipotente, em estreita aliança com governos, cujo qualificativo de “socialistas” ou “social-democratas” se afastou das suas raízes semânticas e do primado da justiça social.
Mas o grande golpe sobre as conquistas de Abril chegou definitivamente com a entrega da nossa soberania aos poderes externos ultraliberais representados pela troika. Poderes externos com os quais o nosso governo estabeleceu um pacto de obediência servil, mesmo que para tal fosse necessário – como tem sido – fazer a pilhagem do país e condenar à miséria e ao desespero grande parte dos portugueses e das portuguesas. O Estado social foi o primeiro alvo desta doutrina económica, bem trabalhada na retórica debitada a preceito por políticos e comunicação social: o refrão iníquo da falta de alternativas. Ouvimos repetidamente que o Estado, demasiado pesado, teria de emagrecer, para podermos pagar aos nossos credores. E o Estado está a sofrer a dieta drástica dos cortes indiscriminados nas suas funções essenciais e do ataque despudorado aos mais fracos: os reformados, os funcionários públicos, os beneficiários de prestações sociais. A desvalorização e a destruição do trabalho produziram um contingente de desempregados, pobres e emigrantes numa situação de desespero tal que denuncia o cinismo obsceno de quem repete que “vivemos acima das nossas possibilidades”. O monstro da “dívida”, qual hecatombe, criava pela via do medo uma hegemonia comparável ao discurso autoritário e ditatorial, que não admite contestação. O pluralismo democrático sucumbia a esta via única. A pretensa inevitabilidade das soluções, que em nada resolvem os problemas do país, diminui a democracia, afasta os cidadãos da política, diz-lhes o contrário do que Abril lhes dissera: que não têm voz nem poder de decisão. No discurso da direita que nos governa, o ataque e o insulto à Constituição e ao Tribunal Constitucional passaram também a fazer parte desta normalidade tão autoritária como sem vergonha. Gozar com as instituições democráticas, como vimos a semana passada com o referendo aprovado pelo PSD, é, aliás, mais um exemplo do modo como o partido que lidera o governo demonstra falta de respeito pela sociedade portuguesa e pela democracia.
Não foi uma brincadeira. Foi o reflexo do sentimento de impunidade das forças conservadoras que julgam poder levar a cabo o seu projeto de destruição do país, sem oposição. Depois da democracia e do Estado social, o ataque dirigir-se-á contra os direitos das minorias e das mulheres, como mostra este referendo e o que acontece na vizinha Espanha, usando de todos os artifícios para recriar um modelo social retrógrado, que julgávamos ultrapassado.
Chegou, pois, o momento da resistência, da resistência feroz a uma opressão violenta, da resistência feroz que se legitima pela dimensão da injustiça que combate.
Estamos aqui para dizer “não” a quem governa Portugal contra os portugueses e as portuguesas. Exigimos a demissão de um governo que perdeu a legitimidade quando escolheu destruir um povo para vender o país aos grandes negócios. Mas estamos aqui para dizer “não” também a todos aqueles que apenas esperam a sua vez para governar da mesma maneira. A nossa resistência é feroz, mas é consistente, porque aponta para um rumo radicalmente novo, um rumo inverso às políticas atuais: a reivindicação da soberania e a recusa da submissão ao poder da troika; a rejeição da tirania da dívida e a exigência da sua renegociação; a afirmação da inalienabilidade e inviolabilidade do Estado social e dos setores fundamentais para o bem-estar das populações. Estes devem permanecer sob gestão pública e ser reforçados no sentido de garantir os direitos que a Constituição consagrou: os direitos ao Trabalho, à Habitação, à Educação, à Saúde, à Justiça, à proteção social, à igualdade entre homens e mulheres e à não discriminação. Este programa é muito claro: desobedece à Europa das troikas, colocando os portugueses e as portuguesas à frente de quaisquer credores, com o seu séquito de bancos e usurários. É o único programa que reclama a dignidade devida a um país e tem de ser o nosso programa em todas as batalhas que temos de travar. Acredito que, entre nós, há quem saiba enfrentar de cabeça erguida quem agora nos humilha.
Finalmente, é preciso um programa de extremo rigor ético e de fidelidade absoluta aos valores de Abril que esta noite queremos resgatar. Só Abril pode ser a medida da “Constituição”, da “Democracia” e do “Estado social” que queremos, e não da Constituição sem direitos, da falsa democracia e do Estado sem povo que eles querem. Sei que, no final desta sessão, entoaremos o hino nacional. Pessoalmente, preferia que cantássemos a “Grândola”. Se o fizéssemos, saberíamos, com mais rigor, ao que vimos. Estaríamos provavelmente mais exigentes e mais fortes na união e na mobilização que se impõe na defesa urgente dos valores de Abril. Saberíamos dizer a este governo e à troika e à nova ditadura que estrangula o país o que dissemos em Abril, há 40 anos: “ O Povo é quem mais ordena”.