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Em Coimbra a habitação sempre foi 'mais mercado do que direito'

Intervenção de Mariana Rodrigues no Comício Levar a País a Sério, de 24 de junho em Coimbra

As políticas de habitação em Portugal há muito que são o parente pobre das políticas sociais que incorporam os direitos fundamentais da vida democrática. As famílias, sucessivamente incentivadas a endividar-se para a compra de casa própria, suportam a carga mais pesada do financiamento da habitação. A proliferação da dimensão “casa-mercado” alastra-se a diversas zonas geográficas do país, tornando falacioso restringir a crise habitacional às grandes metrópoles. Em Coimbra, “cidade universitária” por excelência, a habitação sempre foi “mais mercado do que direito”, e há muito que a cidade vive com as consequências da reprodução das desigualdades sociais que a crise da habitação despoleta.

Infelizmente Coimbra não foge à regra e, à semelhança do resto do país, vive hoje uma crise de habitação sem precedentes. O resultado da liberalização do arrendamento e do indecoroso lobby imobiliário está visível no aumento vertiginoso da renda e dos juros do crédito à habitação. Enquanto os baixos salários e o aumento do custo de vida nos sufocam, o mercado desregulado e o turismo desenfreado têm feito refém os centros das cidades, transformando-os em meros parques de diversão para ricos, para o deleite de uma mão cheia de especuladores. Como nos canta o Luca Argel, “fechou a taberna, a confeitaria e o alfarrabista, a cidade vai virar só hotel para turista”.

Também em Coimbra - longe de ser uma cidade metropolitana - um mercado voraz tem feito galopar o valor médio dos novos contratos de arrendamento, ferindo de forma especialmente acutilante quem estuda (hoje, os custos extra propina chegam aos 520 euros para estudantes nacionais; junte-se a propina dos estudantes internacionais para o cálculo) e desesperando largas centenas de famílias que se encontram, no imediato, a necessitar de resposta habitacional na cidade.

A crise de habitação também violenta, em particular, quem tem outros a seu cuidado e, mais dramaticamente, quem se vê desprovido de uma rede de apoio. Uma resposta pública digna aos desafios da velhice, da doença, da infância, da solidão não se pode realizar na angústia de não saber onde se vai morar no mês seguinte. Adiar uma reforma estrutural é avolumar a bola de neve das catástrofes sociais presentes e futuras.

Perante a submissão sucessiva das políticas da habitação ao negócio fabuloso, há que perguntar:

Que espaço tem uma geração que não cabe nos centros de saber? Uma geração que recebe como solução mais premente para a falta de habitação acessível a construção de residências gourmet que nunca lhe servirão? Que vê barrado o acesso de muitas e muitos às universidades e politécnicos, num processo de (re)elitização do Ensino Superior, que tanto fere a nossa democracia?

Que espaço dá esta política de habitação a quem vive numa situação de sobreocupação habitacional, responsável pela deterioração da nossa saúde mental e potenciadora de violências? Onde vivem as pessoas com deficiência, um dos grupos mais invisibilizados e afetados por esta crise? Que alternativas se oferecem às pessoas a que a casa leva mais de metade do seu salário, e que se veem obrigadas a voltar a viver com os pais e a hipotecar os seus projetos de vida em nome da ditadura da oferta e da procura?

Como podemos nós viver e amar com liberdade, se não nos é garantido o mínimo – uma casa para morar com dignidade?

O borbulhar inevitável da nossa indignação fez despoletar, em fevereiro, a tentativa, pelo governo, de se esquivar a uma discussão estrutural sobre habitação, pela promoção de um falso debate. Fazendo uso de um pacote de medidas tão polémico como inoperacional, procurou – sem sucesso – abafar a crescente mobilização social, sentida em todo o país, pela defesa intransigente do direito fundamental à habitação. Desde então, ignorando as dezenas de milhares de pessoas que saíram à rua no nosso dia 1 de abril, o já insuficiente pacote de medidas tem-se esvaziado e, de cedência em cedência aos arautos do liberalismo, a prometida “robustez” inicial do programa mirra todos os dias: benefícios fiscais adicionais para os senhorios, uma nova redução da taxa sobre o alojamento local, a manutenção dos vistos gold, dos fundos de capital de risco, e até atrasos no pagamento e cortes no já diminuto apoio às rendas.

As promessas da tal reforma estrutural caíram, como se vê, em saco roto.

Desengane-se quem acha que o governo não leva algum país a sério: é seríssimo no compromisso com o país do poder imobiliário e da banca. Não leva é o nosso país a sério.

O nosso país, leva-o a sério quem não se esquiva da discussão e apresenta medidas concretas, com impacto real, para combater a crise da habitação que afeta a mãe, o migrante, o idoso, o estudante.

O nosso país, leva-o a sério quem sabe que só se resolve a crise da habitação com a redução real do valor das rendas e o controlo da prestação do crédito à habitação, e leva-o a sério quem constrói, com os movimentos, projeto político para o fazer.

O nosso país, leva-o a sério quem assume a defesa do coletivo como causa, estando sempre ao lado de quem ousa aspirar mais que a garantia dos mínimos, e que não há-de parar a luta intransigente por uma vida boa.

O nosso país, leva-o a sério o Bloco!