Reeleita pelo Bloco de Esquerda, Marisa Matias reconhece que estas eleições foram as mais difíceis para o partido e, de uma forma geral, para a Europa. Confessando grande preocupação quanto à afirmação das forças da extrema-direita, a eurodeputada portuguesa adianta que está em risco o projeto europeu. Garantindo uma luta séria contra a austeridade que sufoca os países e os cidadãos, Marisa Matias promete continuar a responder com trabalho a todos os que se desencantaram com o Bloco
Porque é que aceitou recandidatar-se à Europa?
Porque era o que fazia sentido. Eu acho que os cargos não se devem eternizar, até porque não considero isto uma profissão, mas sim uma comissão de serviço ou uma missão. Mas neste caso era o que fazia sentido porque os tempos de duração dos processos de decisão no Parlamento Europeu não são iguais aos do parlamento nacional e havia processos iniciados que fazia sentido dar-lhes desse continuidade. Depois, há também o facto da equipa inicial de 2009 eu ser a única que restava. Mas é, sobretudo, uma questão de projeto político.
Foi a primeira a reconhecer que esta reeleição foi difícil. Porque é que estas eleições foram mais difíceis para o Bloco de Esquerda?
Disse-o logo na própria noite eleitoral. Há muitos fatores que contribuíram para o resultado negativo do Bloco. Uns, seguramente de culpa própria, outros de natureza externa. Sinceramente acho que devemos fazer uma reflexão mais profunda sobre os resultados porque acredito que haja más razões para não votar no Bloco, mas também há de haver, seguramente, boas razões. São essas que devem ser tiradas a limpo e têm que se levar em linha de conta. É óbvio que houve um maior cenário de polarização e de fragmentação de voto que não nos ajuda, uma vez que não somos um partido de eleitorado fixo. E, infelizmente, desde 2011 temos vindo a perder algum eleitorado.
Quem é fiel ao Bloco?
As pessoas que tomaram conhecimento ou que foram acompanhando o trabalho feito no Parlamento Europeu independentemente de tudo o resto, mantiveram o seu voto. Depois, há a base militante do Bloco que não é muito alargada, mas que se mantem fiel aos princípios que defendemos, quer para o país, quer para a Europa.
E o que defendem para a Europa?
Desde logo, e foi o que procurei trazer para a campanha, debater os problemas europeus. Toda a gente estava muito mais interessada em discutir as questões nacionais e em trocar galhardetes do que em discutir as verdadeiras questões europeias que nos atingem a todos.
Quais são essas questões?
Desde logo, continuar a fazer frente contra a austeridade. Ela tornou-se uma espécie da linha política base da União Europeia e está a destruir o próprio projeto europeu. Se continuarmos com esta política de austeridade, em última instância será ela própria a colocar-nos fora do euro. Os resultados que tivemos mostram que os dois grupos parlamentares normalmente maioritários perderam muitos lugares, embora continuem a ter maioria no Parlamento, com cerca de 55 por cento dos lugares. Portanto, vai haver uma enorme pressão para continuarem a fazer acordos ao centro, tornando ainda mais difícil esta luta contra a austeridade que deve ser a nossa principal missão.
A ascensão da extrema direita pode dificultar essa luta contra a austeridade?
A ascensão da extrema direita preocupa-nos muitíssimo, até porque não sabemos o que pode acontecer. Seguramente representa o regresso de velhos problemas que todos nós vamos tentando combater de uma maneira ou de outra. Para além de considerar que este é o princípio do fim do projeto da União Europeia. É certo que a Europa é mais do que a União Europeia, mas esta ascensão de partidos da extrema direita dita, seguramente o fim do projeto europeu. Se nós pensarmos que o projeto que tem sido defendido pelos dois maiores grupos parlamentares já é o contrário da solidariedade, com a extrema direita em peso isso agrava-se e reforça-se. Valores como a coesão, a solidariedade, os direitos e a proteção dos direitos e liberdades ficam postos em causa com a presença e reforço destas forças. E veja-se, por exemplo, a novela que se gerou à volta da constituição do próprio grupo parlamentar. Nacionalistas até nesse ponto. Infelizmente são o contrário daquilo que a Europa precisa.
Jean-Claude Juncker no lugar de Durão Barroso. É o homem certo para alterar esse percurso?
Não. Mais uma vez estamos a ir para o mesmo sentido. As políticas de austeridade não beneficiaram nenhum país, nem ninguém. E, por isso não deixo de ficar surpreendida como é que em Portugal ainda há 29 por cento de pessoas que votam nos partidos que definiram essa austeridade e que estão a destruir económica e socialmente o país. Porque se nesses 29 por cento houver cinco que tenha beneficiado destas políticas de austeridade, ainda é muito. Jean-Claude Juncker representa a continuidade dessa linha e confesso que esta continuidade me preocupa. Não sendo as ideologias que eu mais apoio, já não vejo réstia nenhuma, quer da social democracia, quer a democracia cristã que estiveram na origem do projeto europeu e o que permitiu de certa maneira a criação do modelo social europeu. Todas elas foram ocupadas por um pensamento neoliberal e os mercados tomaram conta da política. Juncker não representa nada muito diferente de tudo isto. Ele foi presidente do eurogrupo, foi primeiro ministro do Luxemburgo, que é um exemplo de como uma economia especulativa pode segurar um país. Agora uma coisa é certa, se Junker foi o mais votado pelos partidos, é bom que seja ele a ir a Parlamento para votos.
E o futuro da Europa continua a passar pelo alargamento?
A União Europeia teve vários desencontros com a história. Um deles acho que foi o tratado de Maastricht que aconteceu no momento em que era preciso escolher entre uma guerra profundamente social ou maior alargamento. Escolheu-se um maior alargamento porque sobretudo a Alemanha precisava de mais consumidores para a sua economia. E de facto há uma dominação progressiva do governo alemão em todo o projeto europeu. Essa escolha foi feita, no início da década de 90, sem um aumento do orçamento, nem um reforço da política de coesão. Aliás, o orçamento comunitário está, pela primeira vez na história, abaixo do anterior em valores reais, o que nunca tinha acontecido. Mas houve outros desencontros como aquando da queda do muro de Berlim em que todos achámos que o mundo ia ficar mais multipolar, mais democrático, uma promessa de futuro, mas tudo acabou por ser substituído pelo império com os Estados Unidos a dominar o mundo.
A situação que se vive na Ucrânia é um desses desencontros?
A situação da Ucrânia devia estar na ordem do dia por tudo o que se está a fazer lá. Parece que se quer recuperar a guerra fria, com tudo o que isso pode significar para a Europa e para o mundo. Mas, sem dúvida, que o alargamento por si só não significa rigorosamente nada a não ser um agravamento das condições em que vivemos se isso não for acompanhado por um reforço da Europa Social. A questão dos fundos estruturais tem sido decisiva para o desenvolvimento e Portugal não fugiu à regra.
Mas continuamos a ter regiões entre as mais pobres da Europa. Como canalizar os novos fundos para garantir as mesmas oportunidades a esses territórios e aos cidadãos que ainda lá vivem?
Uma das coisas que me preocupa é desde logo a proposta apresentada e aprovada no Parlamento Europeu pelos deputados do PP, socialistas e democratas que aplica duplas sanções para os países que não cumprem os critérios do défice e da dívida, podendo suspender temporariamente ou definitivamente os fundos estruturais e os fundos de coesão. Isso significa que nós passamos a ter sanções automáticas que resultam do pacote da governação económica, a que se junta para o mesmo crime o poder discricionário da Comissão Europeia de decidir a qualquer momento se quer suspender ou não os fundos estruturais ou os fundos de coesão. Ora, como nós não vamos conseguir cumprir esses critérios e se a Comissão Europeia optar por suspender esses fundos, o futuro apresenta-se-nos numa perspetiva complicada. Até porque sabemos que há setores inteiros na sociedade portuguesa que dependem desses fundos , como o ensino superior, a ciência, ou a cultura. O miserável orçamento que é investido nestas três áreas depende todo de fundos estruturais.
Então considera que os fundos recebidos não foram bem aplicados?
A questão dos investimentos é, igualmente, muito delicada. É verdade que houve muito investimento rodoviário, o que fez com que a lógica europeia atual seja de zero quilómetros de autoestrada. Mas isso mostra como foi a utilização dos fundos estruturais em Portugal que nos transformou num país que tem mais quilómetros por autoestrada do que qualquer outro na Europa. Mais do que a Alemanha, por exemplo.
Mas também partimos do quase zero quilómetros de autoestrada…
É verdade. Mas conseguimos fazer esta proeza de ter esparguete rodoviário no litoral e continuar a haver distritos inteiros que não têm nada. Bragança, Beja são a mostra assustadora da ideia que quem nos governou tem deste país. Uma ideia de um país partido ao meio com três autoestradas no litoral paralelas uma à outra e sem alternativas em muitas regiões. Neste contexto, e tendo em conta as regras, defendo que os novos fundos devem ser canalizados para as questões da mobilidade, de transportes ferroviários que aponta num domínio da economia essencial para nós. Qualquer investimento que nos permita reduzir a dependência externa é importante para a recuperação e para o reforço da economia em Portugal. As questões energéticas deve ser também em meu entender um outro setor a desenvolver.
Enquanto eurodeputada sente-se confortável a falar em nome desta região de Coimbra ou do Centro que conhece tão bem?
Sinto-me confortável e tenho-o feito várias vezes. Mas sem dúvida que, sendo uma deputada europeia, da mesma maneira que denuncio problemas desta região ou de Portugal, denuncio problemas que se vivem noutras partes da Europa. Recordo que no início do primeiro mandato viajei para uma região na Hungria que tinha sido devastada por lamas tóxicas e que as autoridades locais tentaram evitar que se discutisse no Parlamento. Houve muitas pessoas a morrer, outras que ficaram sem casa e a viver em território contaminado. Eu fui lá, apanhei todos os níveis de contaminação que tinha que apanhar porque era a única maneira de tornar visível aquele problema humanitário. E eu gostava de ver, também outros eurodeputados oriundos de outros países a denunciarem as situações graves que possam acontecer em Portugal. Mas as questões que coloco têm sempre a ver com legislação comunitária e com o seu incumprimento.
Há uma visão feminina da Europa?
Eu gostava bem que houvesse uma visão feminista pois isso significava que havia mesmo igualdade entre homens e mulheres. Embora as pessoas entendam o feminismo como uma coisa muito radical, de achar que as mulheres são iguais aos homens. Com a crise não foi só o aumentar da pobreza e das desigualdades sociais, foi o avanço do conservadorismo na Europa. E em relação aquilo que são os direitos das mulheres isso fez-se sentir em muitos países de forma muito dramática. Voltar a por na Constituição da Hungria que o lugar da mulher é em casa a tomar conta dos filhos e isso ser aceite num país que teoricamente cumpre as cartas dos direitos dos cidadãos europeus e que está inscrita nos tratados, ou a forma como em Espanha se procura voltar atrás na lei da despenalização do aborto e fazer da interrupção voluntária da gravidez um crime é prova de um retrocesso preocupante. A Europa tem-nos mostrado um projeto que caminha num sentido mais conservador. E neste caso, são prejudicadas os gruposmais desfavorecidos,como as mulheres e as populações emigrantes.
E pode piorar?
Bem, a expressão de voto nas forças conservadoras e na estrema direita não auguram nada de bom a esse respeito.
É correto fazer-se uma análise dos resultados destas eleições europeias em cada Estado?
Eles são indissociáveis. Nós temos a Comissão Europeia que tem o direito de iniciativa mas que não legisla. Depois há dois legisladores que é o Parlamento Europeu e o Conselho onde estão representados os governos de cada Estado. Portanto, todas as medidas que foram aprovadas nos últimos anos, desde 2010 com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em que o Parlamento e o Conselho passaram a ser colegisladores, acabam por envolver os governos nacionais. São os ministros e os primeiros ministros que têm assento no Conselho o que faz com que todas as decisões que foram tomadas o sejam em igualdade de responsabilidades pelo Parlamento e pelos Governos.
Então concorda com aqueles que dizem que estes resultados tiram legitimidade ao Governo português?
Este Governo já não tem legitimidade há muito tempo, independentemente dos resultados eleitorais parta a Europa. É o primeiro Governo inconstitucional na história da Democracia em Portugal. Todas as medidas que procura introduzir são de uma maneira ou de outra, inconstitucionais. Um Governo é eleito para respeitar a constituição e o que nela está consagrado e não é para em nome de interesses dos mercados financeiros, estar sistematicamente a tentar reverter a Constituição em particular, naquilo que são os direitos fundamentais de quem trabalhou uma vida toda. Sem dúvida que este resultado é expressivo daquilo que foi a verdadeira moção de censura ao Governo por parte dos eleitores. E aí, embora estivésse estivéssemos a fazer eleições só para o Parlamento Europeu volto a dizer que estava em jogo o Parlamento e os governos porque a co-legislação é feita pelos dois. Que eu me lembre o primeiro ministro português nestes anos todos nunca utilizou o direito de veto. Todas as coisas mais penalizadoras para Portugal foram aprovadas por unanimidade o que significa que o primeiro ministro português também votou a favor.
A eleição de Marinho Pinto poderá desequilibrar um pouco essas uniões?
Depende de qual o grupo parlamentar que ele escolha em Bruxelas e de quais forem as políticas que vai defender. Mas, sem dúvida que é um dado novo na política portuguesa.
Isso não se percebeu durante a campanha?
Penso que se percebe que há uma orientação de esquerda em matéria de política económica, mas como é que isso vai ser concretizado é que ainda não se sabe. O Parlamento Europeu tem um funcionamento muito diferente daquilo que é o Parlamento Nacional. É preciso fazer muito trabalho de casa para se alcançar maiorias e se conseguir sucesso nas negociações. É preciso paciência até porque implica mais trabalho lá e menos visibilidade aqui. Há muitos deputados e deputadas que nunca estão disponíveis para assumir a responsabilidade de fazer legislação pelo que isso implica e pelas negociações que são necessárias. Há outros que estão disponíveis. Vamos ver. Não tenho qualquer preconceito em relação ao dr. Marinho Pinto e desejo-lhe felicidades pois foi um dos grandes vitoriosos da noite eleitoral para a Europa e desejo que consiga levar à frente o seu projeto. Será mais uma voz contra a política da austeridade. Espero!
As Beiras, 3 de julho de 2014
Entrevista conduzida por Eduarda Macário