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VER NO NEVOEIRO

A batalha da propaganda é de alta intensidade em todas as guerras. Na guerra da Ucrânia a intensidade tem sido altíssima. 

Numa imprensa fortemente tutelada pelo governo de Putin, o governo de Kiev é apresentado invariavelmente aos povos da Rússia como um grupo de toxicodependentes e nazis que fazem da provocação e da agressão às comunidades russas um elemento básico da sua política. Simetricamente, a hitlerização e a patologização psíquica de Putin por muitos opinadores europeus e norte-americanos segue a cartilha propagandística que foi adotada anteriormente com Saddam ou com Khadafi e é tão letal como as armas usadas no conflito.

A batalha da propaganda reduz a heterogeneidade e a complexidade das coisas a caricaturas e a estereótipos. É a apologia do primarismo, a apologia de um olhar a preto e branco, que se dispensa de captar os cambiantes do presente e as marcas fundas das trajetórias do passado, cheias de contradições e de tensões políticas em cada um dos campos. Esse olhar primário, que muita comunicação social estimula na busca de conquistas fáceis de share, finge ser irrelevante o lugar a partir do qual se fala da guerra. Por exemplo, a narrativa de uma mulher de Lugansk cuja família e amigos foram dizimados por forças ucranianas na guerra que ali se regista há tantos anos – e que, deste lado do mundo, foi sempre olimpicamente ignorada… – será certamente muito diferente da narrativa de uma mulher de Odessa cuja família e amigos foram separados depois da anexação da Crimeia pela Rússia em 2014.

Há uma batalha a fazer pela sociedade, por cada um/a nós, que ganhe para todos/as um distanciamento face às estratégias da propaganda e da estereotipificação. É uma batalha dificílima, porque impõe que nos não deixemos envolver quer por mensagens de hiper-simplificação quer por discursos de “especialistas” que sabem tudo sobre a guerra – desde as siglas dos batalhões até aos detalhes das estratégias das lideranças, passando pela carga de cada ogiva instalada em cada míssil – menos quais são os caminhos para uma paz possível. Contra esse discurso que explica a guerra e que se demite de lhe opor a paz, não podemos impor-nos menos que uma abertura à complexidade da realidade. À guerra da simplificação propagandística temos que saber opor a consciência de que a história, na Ucrânia como em toda a parte, não é uma luta de anjos contra demónios. Ou, como desafiava há dias José Pacheco Pereira, temos de ter um olhar a cores para podermos decidir a preto e branco.

A estratégia de substituir os factos pela propaganda é uma conhecida arma de guerra. Mas não nos enganemos: partir do princípio de que tudo se resume a propaganda e que só nos estão a contar uma história muito mal contada é um exercício de auto-engano que nos isola da realidade e nos cria a ilusão de que nos podemos dar ao luxo de nada avaliar. Para lá da propaganda, há factos. Vemo-los, ouvimo-los e lemo-los, não os podemos ignorar.

Pubicado a 1 de março de 2022

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