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VACINAS DE PRIMEIRA E DOENÇAS DE SEGUNDA

O início da vacinação contra a COVID-19 é um marco inegável na história da investigação médica. Nunca, em tão pouco tempo, tinha sido possível criar, avaliar, produzir e distribuir uma vacina para uma pandemia com a extensão e a complexidade da que estamos a viver. A comunidade científica de muitos países concentrou-se completamente neste trabalho e teve, para tal, o respaldo pleno das autoridades sanitárias. A indústria farmacêutica teve na dimensão e no dramatismo da pandemia uma garantia de retorno certo do seu investimento. Os Estados não pouparam recursos na reserva de aquisição de toda a produção de vacinas. E, em menos de um ano, fomos da descoberta do vírus à administração de vacinas contra ele.

O lado luminoso deste passo tem um reverso. Enquanto para a COVID-19, que destrói vidas e economias no mundo desenvolvido, foi possível mobilizar dinheiro, trabalho científico, capacidade organizativa e apoio político para conseguir em tempo record uma vacina, para doenças como a malária, o dengue ou o ébola, que causam mortes no mundo pobre, continua a prevalecer a falta de uma resposta adequada. 

Sim, há uma economia política da saúde global e a desigualdade é a sua marca definidora. A negligência é a extensão operativa dessa desigualdade. Doenças de primeira e doenças de segunda, doenças que mobilizam resposta e doenças negligenciadas. Negligenciadas pela indústria, invocando que não geram mercado de dimensão e consistência suficientes para pagar o investimento em vacinas. Negligenciadas pelos poderes políticos porque as vítimas não têm voz nem geram pressão sobre as economias. Negligenciadas pelos meios de comunicação deste lado do mundo porque o que se passa longe, longe fica.

Sobre esta desigualdade assenta a construção das pandemias como realidades que vêm do Sul pobre para o Norte rico e que são, por isso, ameaças “ao nosso modo de vida”. A perfídia de Trump ao classificar o sars cov 2 como “vírus da China” é apenas uma expressão chico-esperta desse entendimento partilhado a Norte de que as pandemias são coisas da miséria que importa conter antes que cheguem às avenidas das nossas cidades. Enquanto o ébola matar, na Libéria ou na Serra Leoa, e a malária dizimar, em Moçambique, na Nigéria ou no Congo, os esforços para os combater continuarão a ser lentos demais e isolados demais, sem qualquer comparação com a mobilização política e científica, com o investimento e com a rede de entendimentos que propiciou este feito singular, que foi a administração da vacina contra a COVID-19 dez meses depois da declaração de pandemia.

Publicado no "Diário as Beiras" -  29 de dezembro de 2020