Share |

Territórios e pertenças

“São portugueses?” – terá perguntado o rei D. Carlos aos tripulantes de um barquinho de pesca a muitas milhas da costa peninsular. “Não, somos da Póvoa do Varzim.” – terá sido a peculiar resposta. Neste episódio, recordado pelo arquitecto Alexandre Alves Costa, as identidades nacional e local surgem bem contrastadas, a pertença a uma entidade nacional completamente ausente (na viragem do século, a poucos anos da república), marcante a pertença local.

Onze décadas volvidas, os territórios e as pertenças não são já percebidos da mesma forma. Mas uma olhadela às candidaturas autárquicas permite traçar o perfil do candidato ideal: um “filho da terra” que sempre ali viveu ou regressou após a formação académica e com família modelar (não que os candidatos tenham todas essas características, mas elas são enfatizadas quando existentes). Esta construção ideológica cria uma espécie de patriciado entre os cidadãos descendentes de locais e que sempre viveram ali, os migrantes constituindo uma espécie de metecos, de cidadãos de segunda alheados das decisões políticas.

Em autarquias onde são elevadas as percentagens de habitantes imigrantes, dos que são ou já foram emigrantes, dos que ali se fixaram vindos de outros locais, dos que fazem deslocações pendulares por trabalho, estudo ou habitação, aquela visão redutora é especialmente perniciosa: por contribuir para afastar da actividade política muitos cidadãos e por prescindir da colaboração desses cidadãos com mais mundo para encontrar soluções mais criativas. As identidades locais têm amiúde sido manipuladas para acirrar divisões e conflitos ao invés de buscar complementaridades e cooperações.

E nós, quem somos, qual é a nossa terra? Será onde nascemos ou onde moramos, onde passámos a primeira infância ou a adolescência, onde trabalhamos ou onde criamos os filhos, onde é a nossa casa ou a dos nossos avós, onde sofremos ou onde fomos felizes, todas elas, todas aquelas com que cremos ter laços, ainda que nunca lá tenhamos estado? O cartão de cidadão corta cerce as hesitações. Mas assinalarem-nos um sítio não nos confere pertença e identidade. “Eu também não tenho terra, também sou de Lisboa” – notava o poeta José Gomes Ferreira. As identidades e pertenças aos territórios não são “naturais”; elas carecem de ser construídas com a participação de todos nas decisões sobre o futuro comum.

Durão Barroso, a seguir à demissão de Gaspar, para o elogiar e a Maria Luís, afirmou que ambos eram muito estimados “aqui na União Europeia”: fica claro que, para Barroso, a União Europeia não é Portugal e os demais países membros que a constituem, é lá (um não-território) onde funcionários e comissários não-eleitos decidem dos governos e dos destinos dos povos europeus.

Para que à pergunta sobre se somos europeus não respondamos “Não, somos gandareses”, é imperioso recusar as visões atávicas e paralisantes e desenvolver perspectivas múltiplas e integradas do território e harmonizar as diversas identidades.

Independente de Cantanhede, 10 de Julho de 2013