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Sem pecado

O decreto lei que regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível desencadeou um tipo de oposição que ocorre sempre que é discutida legislação que pode ser interpretada como contrária à doutrina da Igreja Católica. E sublinho interpretada, porque dos Católicos Progressistas até a inúmeros católicos sem nenhum ativismo particular, se fazem leituras cristãs e humanistas deste decreto lei onde não se associa a eutanásia a uma forma de pecado. E é esse suposto pecado que nos é servido em embrulhos variados, desde o embrulho da “defesa da vida” a embrulhos conspiracionistas de supostas maquiavélicas economias de recursos públicos com a legalização eutanásia. Como não me diz respeito, nem aceito a grelha de pecado que foi construída durante séculos por impérios, por dinastias e por algum clero com os mais variados intuitos, da sua preservação no poder à dominação de outros povos, todo esse argumentário por mais embrulhadinho que venha não me move, nem me comove.

Como a Covid se tem encarregado de nos lembrar, as nossas vidas são efémeras e o tempo que passamos neste mundo deve ser vivido com dignidade, do princípio ao fim. Sempre estive do lado dos que acham que todos devem ter o direito de poder passar por este mundo com a possibilidade de viver uma vida digna, de trabalhar com um salário justo, de receber ajuda na adversidade, de poder aceder à saúde (incluo os cuidados paliativos) e à educação de uma forma universal. Por isso, no momento em que deixamos este mundo, sempre que possível, deveríamos garantir essa dignidade aos nossos semelhantes. Tal como está consagrado nesta lei, concordo que uma pessoa maior de idade em plena posse das suas faculdades intelectuais que entende que nos deve deixar de uma forma digna evitando sofrimentos intensos ou prolongados, não deve ser impedida por um preconceito religioso, ortodoxo e desumanizante, que pouco ou nada tem a ver com o exemplo de vida do próprio Cristo (ou a personagem construída pelos homens a que se designou Cristo). 

Publicado no "Diário as Beiras" -  18 de fevereiro de 2021