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A POLÍTICA DE ÁGUAS PARADAS

Robert Cox, um dos mais inspiradores cientistas políticos do nosso tempo, sugeriu uma diferenciação entre dois tipos de teorias. De um lado, as teorias de resolução de problemas, produtoras de um conhecimento eminentemente prático apontado à redução da complexidade dos sistemas pela via da solução de casos concretos. Do outro lado, as teorias críticas, legitimadoras de um conhecimento não resignado à realidade tal como está e, por isso, apontado à ampliação do quadro de possibilidades de funcionamento dos sistemas, através da transformação dos respetivos pressupostos de fundo.

São dois modos de pensar o conhecimento e dois modos de pensar a intervenção na realidade. Um é essencialmente conservador, assume o que está como limite do possível e ambiciona gerir bem o quadro presente. O outro encara a superação dos limites do possível como necessária e pretende contribuir para transformar o quadro presente ampliando as hipóteses de futuro de acordo com critérios ético-políticos, como a justiça.

Esta é uma diferenciação definidora da ação política. Há uma cultura política para a qual o possibilismo é o limite. Nela bebem quer os conservadores assumidos, quer os cínicos, quer os minimalistas. Todos perfilham uma mesma alergia a uma agenda efetivamente transformadora e veem nela uma fonte de turbulência irresponsável. Essa conservação do essencial é frequentemente disfarçada atrás de uma retórica de mudança – mas é sempre mudança do acessório para que o fundamental se mantenha intocado. Há uma outra cultura política que arranca do compromisso essencial com a transformação profunda porque a entende imperativa face à geração contínua de desigualdades e de injustiças pelo funcionamento “normal” da sociedade. Para esta cultura política, a realidade é muito mais que aquilo que em cada momento assumimos como tal e a visibilização desses ocultos, desses interditos e dessas margens de utopia é o seu modo de ser. 

Em cada tempo, estas duas culturas enfrentam-se com intensidades diferentes. O que é decisivo para essa intensidade do confronto entre elas é a relação de forças na sociedade, seja na formalidade das instituições seja na informalidade da conformação de opiniões. 

Por ser assim, em Portugal, este é um tempo de enfrentamento de intensidade reduzida entre uma cultura política de resolução de problemas e uma cultura política crítica. O “arco da governação”, momentaneamente posto em causa após as eleições de 2015, recompôs-se e voltou a marcar o compasso da governação, sobretudo depois de 2019. Nos anos imediatamente seguintes a 2015, o Governo do PS teve apoio parlamentar à esquerda para ir além da mera resolução de problemas e fazer algumas mudanças com significado na amplitude das escolhas relevantes para a sociedade. A partir de 2019, o partido do Governo regressou ao possibilismo frio e, hoje, o único projeto do Governo é continuar a governar depois. A falta de ambição transformadora é a marca da governação atual e a forma como foi concebida e será executada a bazuca de dinheiros europeus é a confirmação inequívoca de que assim vai ser. Talvez se mudem procedimentos – mais simplex aqui, mais tecnologia acolá – talvez se mudem regimes eleitorais, estratégias de combate à corrupção e regras do judiciário, mas não se tocará em nada de verdadeiramente essencial, seja no mundo do trabalho, seja na ambição da proteção social, seja na robustez dos serviços públicos, seja ainda na relação entre propriedade e proteção do ambiente. 

Pântano, pois. Águas paradas, sem corrente que venha do fundo para a superfície, que gerem ondas desafiantes. A governação está hoje absolutamente concentrada em gerir essa quietude, em evitar essas ondas, em desacelerar essas correntes. E em fazer isso tudo seguindo escrupulosamente os ensinamentos de Nicolau Maquiavel sobre como manter o poder um certo dia conquistado.

Pubicado na VISÃO -5 de agosto de 2021