Eis-nos mais uma vez em junho, mais um mês do orgulho, mais um dia 28 a evocar a revolta de Stonewall - esse momento fundacional da luta pelos direitos LGBTQIA+ e da sua expressão mais visível, as marchas. Porque este movimento é força constante de transformação, a cada ano passado, apenas a data se repete, novas conquistas vão-se somando e novas análises vão sendo exigidas.
Sabemos a história: no dia 28 de junho de 1969 várias pessoas que frequentavam o bar Stonewall Inn, em Nova Iorque, revoltaram-se contra (mais) uma rusga policial violenta, dando origem a uma série de manifestações espontâneas, uma reação coletiva que trouxe pela primeira vez as questões LGBTQIA+ para o espaço público e, em simultâneo, para o campo político. Aqui está algo que ainda hoje não podemos deixar fugir: a associação umbilical entre público e político. As questões LGBTQIA+ não são meramente pessoais ou da esfera privada, pelo contrário, o estigma, a opressão, são sistémicas e com efeitos coletivos, construídas por um sistema capitalista que para sua conveniência e sobrevivência cultiva a normatividade cisheteropatriarcal.
Portugal, então imerso num regime ditatorial opressor e alienante, teria de esperar mais alguns anos para ver surgir este movimento. Sem surpresa, apenas a Revolução do 25 de Abril de 1974 abriu portas, ou pelo menos a frincha de uma porta, a um primeiro manifesto LGBT, publicado nos jornais da época em maio do mesmo ano (“Liberdade para as Minorias Sexuais”, pelo Movimento de Ação Homossexual Revolucionária). Este manifesto desencadeou a reação pública do general Galvão de Melo, que em plena televisão afirmou que a revolução não tinha sido feita para “prostitutas e homossexuais”, tornando evidente que a revolução não estava, nem está, concluída, é um processo e um projeto pela qual devemos continuar a lutar todos os dias até que a liberdade seja para todas as pessoas, pois liberdade só é a sério quando o é para todas as pessoas.
Portanto, apesar de Abril de 74 ter permitido uma porta entreaberta para a expressão deste combate em Portugal, muitos anos passariam para que num país profundamente patriarcal, conservador e vincado por um teimoso saudosismo colonialista, surgisse um verdadeiro movimento LGBTQIA+. Para assinalar apenas alguns marcos da história do movimento em Portugal, que na década de 90 finalmente descola com o nascimento de vários coletivos e publicações, poderei referir o surgimento do Coletivo de Homossexuais Revolucionários em 1980, do Grupo de Trabalho Homossexual do PSR (Partido Socialista Revolucionário) em 1991, ou o primeiro Arraial Pride, no Príncipe Real em Lisboa, em 1997.
No ano de 2000 surge em Lisboa, por fim, a primeira marcha do orgulho. Em 2005, centenas de pessoas ocuparam as ruas de Viseu na manifestação de impacto nacional STOP Homofobia, destinada a condenar as agressões a homossexuais naquela cidade. Uma segunda marcha surge em 2006, no Porto, impulsionada pela morte de Gisberta, transsexual barbaramente agredida e torturada.
Coimbra foi a terceira marcha, em 2011, desbloqueando o binómio das grandes cidades até aí existente. Hoje assistimos a um florescer exponencial desta singular forma de luta política em espaço público, a uma verdadeira primavera desta forma de ocupação das ruas, com perto de três dezenas de marchas convocadas em 2023, por todo o país, incluindo as ilhas e alguns dos locais mais conservadores do interior, onde esta representa efetivamente uma luta pivotal contra o conservadorismo.
Hoje as marchas são cada vez mais e cada vez mais participadas, com grande afluência jovem, sendo um espaço privilegiado de ativismo e politização. Mas a natureza historicamente e intrinsecamente política destas manifestações não está alheia a ameaças, como o esvaziamento político de um movimento que é cada vez mais visível, o aproveitamento pelo capital do que é a priori um movimento de resistência contra os valores que o sustentam, o pinkwashing que atira tinta arco-íris ao logotipo de empresas discriminatórias, ou a falácia liberal do individualismo.
Cada marcha deve ser acompanhada de uma tomada de consciência crítica sobre o que representa, sobre o poder que encerra, como uma luta política, coletiva e revolucionária concreta contra o sistema opressor capitalista vigente, o fantasma persistente e sufocante do conservadorismo ou a perigosa fragmentação neoliberal. As marchas são, e devem continuar a ser, anticapitalistas, rejeitando qualquer tentativa de aproveitamento mercantil. São e devem continuar a ser interseccionais, unificando feministas, antiracistas e outros setores na luta contra o cisheteropatriarcado. São e devem continuar a ser revolucionárias, como um dos grandes movimentos de resposta internacional ao crescimento da extrema-direita.
A diversidade na liberdade sexual ou na identidade de género é ainda sujeita a uma opressão e a desigualdades que se adensam quando colidem com as dimensões de classe ou étnico-raciais, por exemplo, pois todos estes fatores discriminatórios estão enraizados no mesmo tipo de sociedade patriarcal e são pilar do mesmo sistema capitalista. Fazer uma destas lutas é também fazer a luta toda, marchar pelo orgulho é celebrar as conquistas desta história colorida, transformar o presente e reivindicar um futuro de emancipação coletiva.