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O resgate do constitucionalismo do comum e o desmascarar dos projetos predatórios da(s) Direita(s)

O atual processo de revisão constitucional não deve ser encarado como um fardo, muito menos como uma oportunidade de levar a cabo “alterações cirúrgicas” que, em boa verdade, nada mais fazem do que precarizar a situação do Estado e da pessoa.

Atualmente, está em curso um processo de revisão do texto da Constituição da República Portuguesa de 1976. Não obstante as circunstâncias lastimáveis que marcaram o contexto em que tal processo foi desencadeado, tudo parece indicar para que, em breve, a nossa lei fundamental venha efetivamente a ser alterada pela oitava vez na história da democracia em Portugal.

Ora, uma Constituição é, antes de mais, um projeto humano de matriz jurídico-política, um baluarte definidor e protetor dos valores, regras e princípios que, enquanto comunidade, qualificamos de indispensáveis e inegociáveis, porquanto são eles que nos conferem uma identidade própria. Nenhum texto constitucional pode, por essa razão, ser ideologicamente neutro. É no âmago mais íntimo da política que o mesmo é pensado, disputado, redigido e concretizado, traduzindo simultaneamente um ser e um dever ser, marcando um tempo (presente futuro) e um espaço (nacional supranacional). Se quisermos simplificar o discurso, uma Constituição é um compromisso comunitário congregador de uma história (do que se foi), de uma realidade (do que se é) e de uma esperança (do que se pretende vir a ser).

A Constituição da República Portuguesa de 1976 é uma Constituição de Abril, edificada sob a premissa basilar de que só a abertura de caminhos para uma sociedade socialista pode realmente concretizar os desígnios de garantia da dignidade humana, de tutela dos direitos e liberdades fundamentais, de defesa incondicional da democracia e de concretização da ideia de Estado de Direito. Trata-se, pois, de um texto constitucional que, não obstante os ignóbeis ataques que tem sofrido em razão dos ventos neoliberais e conservadores que assolam o nosso país e o mundo, procura manter-se firme na defesa de um imperativo axiológico de liberdade social fraterna, o único capaz de alicerçar um projeto existencial-convivencial verdadeiramente emancipador para a pessoa comum, ousando propor-lhe ansiar por uma vida boa, o que implica uma quebra radical e imediata com os esquemas de dominação capitalista, patriarcal e colonialista que tolhem – senão mesmo neutralizam – o valor daquela.

Do que foi dito pode extrair-se uma conclusão fundamental: formalizando um compromisso da comunidade com uma mundivisão socialista – aquela que reclama pelo fim da exploração e do privilégio, num cenário de real liberdade, igualdade e fraternidade entre todas as pessoas, sem discriminações –, o texto da Constituição continua a ser a nossa principal arma de defesa face a projetos predatórios que procuram disseminar, reproduzir, conservar e legitimar estruturas sociais de dominação, retirando ao povo o estatuto de titular do poder constituinte e sujeitando-o aos mais bárbaros retrocessos civilizacionais. É preciso, nessa medida, proteger a lei fundamental com a urgência e força de quem está plenamente consciente de que nada está conquistado, nem tampouco garantido.

De resto, é hoje evidente que a(s) Direita(s) se encontra(m) profundamente incomodada(s) com o nosso texto constitucional, canalizando todas as suas forças para o desfigurar e fragilizar. Basta, nesse sentido, considerar a proposta do CHEGA de revogar os limites materiais ao poder de revisão (consagrados no artigo 288.º da CRP), à qual se junta a Iniciativa Liberal (IL), por enquanto, de forma mais tímida (reclamando ‘somente’ a revogação de parte das alíneas do referido preceito). O objetivo de ambas as propostas é, claro está, desarmar a nossa lei fundamental para, em seguida, a mutilar até que não sobrem quaisquer resquícios da sua identidade. Na mesma senda surgem várias tentativas de branqueamento histórico – veja-se a proposta do CHEGA de eliminação da expressão “regime fascista” do preâmbulo da nossa Constituição, substituindo-a pela fórmula “regime vigente” – ou de demonização do socialismo – evidente quer no projeto de revisão constitucional do CHEGA, quer da IL –, na tentativa de que o oprimido dê por si a temer a sua própria emancipação, numa atitude que alguns não hesitariam qualificar de autofágica. Ficam, assim, desmascarados os projetos predatórios da(s) Direita(s), não por força do labor de uma esquerda vigilante, mas pela própria mão daquela(s), com a arrogância de quem se crê intocável e o apetite sôfrego de quem não olha a meios para atingir fins.

É também por isso que o momento que vivemos é absolutamente decisivo. O atual processo de revisão constitucional não deve ser encarado como um fardo, muito menos como uma oportunidade de levar a cabo “alterações cirúrgicas” que, em boa verdade, nada mais fazem do que precarizar a situação do Estado e da pessoa, transpondo para o plano jurídico-constitucional a tentação perversa de se “legislar à flor da pele” (... basta, nesse sentido, pensar-se na introdução de normas constitucionais que abrem a porta ao internamento compulsivo de “pessoa portadora de doença contagiosa grave ou relativamente à qual exista fundado receio de propagação de doença ou infeção graves”, tal como proposto pelo PS e também pelo PSD, embora de forma um pouco mais cautelosa neste último caso. O mesmo se pode afirmar, de resto, relativamente às propostas apresentadas em matéria de acesso a meta-dados). Assim sendo, urge que este processo seja levado a sério por todas as forças políticas e sociais, aproveitando-o para prossecução de três objetivos fundamentais:

Em primeiro lugar, é preciso resgatar Abril, expressão por excelência de um constitucionalismo do comum na história jurídico-política do nosso País. Para tal, impõe-se aproveitar esta oportunidade para travar o incessante processo de enfraquecimento da nossa lei fundamental, nomeadamente em matéria de direitos sociais e de direitos dos trabalhadores (desde logo, daqueles que se encontram em situação de maior vulnerabilidade). Mais do que nunca, a Constituição deve zelar pela saúde, pela educação, pela habitação e pelo apoio e proteção sociais, recusando toda e qualquer narrativa assente numa ludibriosa ideia de complementaridade intersectorial (vide, neste sentido, os projetos de revisão constitucional do CHEGA, IL e PSD) que nada mais visa do que depredar os serviços públicos, colocando-os à mercê do capital e, assim, negando a sua disponibilidade e acesso a quem deles mais necessita. Esta tendência retrogressiva deve mesmo ser ativamente combatida e invertida, procurando dar-se passos sólidos no reforço da socialidade, alicerçando-a em políticas públicas democratizantes e que, como já foi dito acima, permitam a todas as pessoas aceder a uma vida boa, para que esta não fique reservada a uma pequena elite que satisfaz as suas necessidades e desejos à custa da maioria.

Em segundo lugar, é necessário atualizar e reforçar o texto da nossa Constituição em certos domínios-chave, permitindo-lhe cumprir o seu papel fundamental num tempo assolado de crises e incertezas. Caso exemplar é o da necessidade de reforço do compromisso do nosso texto constitucional para com o desenvolvimento sustentável e a proteção do meio ambiente e da biodiversidade (nomeadamente, através da tutela do bem-estar animal). Num outro plano, pensemos na urgência de adequar a Constituição às exigências da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (devidamente assinada e ratificada pelo Estado Português), prevenindo e combatendo as inúmeras situações de discriminação a que estas pessoas ainda são sujeitas nos mais variados domínios da sua vida. Considere-se também a importância da assunção de um compromisso jurídico-constitucional de maior investimento no setor dos cuidados de saúde mental ou de criação de um Serviço Nacional de Cuidados, universal e geral, capaz de assegurar o acesso de todos os cidadãos aos cuidados em situação de dependência.

Em terceiro lugar, deve este processo afirmar-se como ato de resistência coletiva ao assalto neoliberal e conservador em curso. Neste contexto, a rejeição liminar de propostas como a consagração de uma pena de prisão perpétua (CHEGA), a aplicação de penas de castração química para “prevenir” crimes de natureza sexual (CHEGA) ou a consagração de exceções ao princípio fundamental da presunção de inocência (CHEGA) só reafirmará a solidez do espírito ético e humanista que a Constituição, desde o primeiro momento, quis imprimir ao nosso sistema jurídico-penal. Do mesmo modo, a não aceitação da configuração do direito de propriedade privada como um “direito, liberdade e garantia”, tal como proposto pelo IL e pelo PSD, prevenirá a instalação de um individualismo solipsístico nas dinâmicas socioeconómicas, reafirmando a importância – hoje mais evidente do que nunca... – da dimensão social da propriedade. Por fim, a desconstrução do mito da existência de um sistema de ensino endoutrinador, alimentado pelas vozes daqueles que reclamam a sua suposta “neutralidade política e ideológica” (CHEGA), permitirá reforçar os valores e princípios consagrados no texto constitucional, evitando que este se transforme numa mera folha de papel totalmente incapaz de se afirmar como um verdadeiro projeto humano transformador.

O momento é de urgência. Os projetos predatórios da(s) Direita(s) são hoje mais claros do que nunca, ameaçando transformar o nosso sistema jurídico-constitucional numa superestrutura totalmente funcionalizada à manutenção da infraestrutura capitalista, patriarcal e colonialista. É preciso, por isso, que recordemos a essência do constitucionalismo, enquanto movimento político-social destinado à proteção da pessoa (da sua dignidade, dos seus direitos e liberdades) e à limitação do poder governamental, com vista a prevenir e combater os seus abusos. Mais, é necessário tutelar e materializar o constitucionalismo do comum, respeitando, protegendo e promovendo bens individuais e coletivos, e assim permitindo a todas as pessoas aceder a uma vida boa – o tipo de vida pressuposta pelo dever ser do nosso texto constitucional, mas que tantos querem esvaziar, negando-lhe acesso à realidade do ser. Resistir é preciso para que se cumpra Abril. Comecemos por preservar uma das suas maiores conquistas: a Constituição da República Portuguesa de 1976.

Publicado em Esquerda.net a 22 de maio de 2023