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O país sofrido e o país zangado

Há em Portugal um país sofrido e um país zangado. O país sofrido é aquele que se sente indefeso perante as agressões à vida de cada um, umas com rosto, a maioria sem ele. Gente pobre, gente empurrada para a fragilidade diante dos poderes sempre imensos, gente sem voz, gente sem bússola. O país zangado é aquele que se afadiga na identificação de responsáveis pelos males grandes e pequenos do quotidiano. Gente quase sempre despolitizada, a quem as emoções fugazes das redes sociais multiplicam alvos.

A nuvem espessa trazida pela pandemia aumentou estes dois países. O desemprego, o abandono, a angústia do despejo ou da dívida impagável estão a aumentar enormemente a insegurança das vidas e a trazer para esse país sofrido muita gente que dele nunca tinha feito parte. É essa insegurança que faz crescer também o país zangado. O desemprego, o abandono, o despejo, a dívida hão de ter responsáveis. E, maioritariamente despolitizado, o país zangado coloca facilmente uma compreensão emotiva e superficial da corrupção nessa procura incessante de responsáveis.

Os dois países só em parte se sobrepõem. O país zangado é mais facebookiano que o país sofrido e o país sofrido é mais avesso à voz pública. Mas em ambos habita a mesma relação magoada com poderes inacessíveis e opacos e a mesma perceção de fosso entre os de baixo e os de cima.

O grande desafio político para o nosso tempo é dar resposta aos dois países em simultâneo. Não menosprezar nenhum deles por causa da sua despolitização e juntá-los a partir da sua condição comum de país dos de baixo é algo que exige uma combinação delicada de humildade com firmeza. Marcelo Rebelo de Sousa geriu esta tarefa respondendo com afetos individuais ao país sofrido e com distância cautelosa ao país zangado. Ao país sofrido não quis dar a resposta da exigência de serviços públicos mais fortes e da sua presença em todo o território nacional. Ao país zangado não quis dar a reposta de que o discurso contra uma suposta corrupção generalizada é a melhor cortina de fumo para enevoar os negócios dos que sempre ganharam com uma economia que gera pobreza.

Marcelo escolheu responder assim e essa resposta define-o politicamente. A acentuação da crise social exige uma alternativa que dê outras respostas em simultâneo ao país sofrido e ao país zangado. Respostas de cuidado com cada um e de enfrentamento com quem nos descuida. Dadas por quem tenha créditos firmados tanto nesse cuidado como nesse enfrentamento.

Publicado no "Diário As Beiras” - 12 de setembro de 2020