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O discurso deles

É da vida que fala o discurso político de quem manda? É a realidade o seu critério último? É a verdade a sua linha vermelha inultrapassável? A resposta a estas três perguntas é invariavelmente "não". O discurso político de quem manda é armadilhado: o seu critério maior é uma hábil, cínica e tática gestão das expectativas dos seus destinatários. E, para isso, o discurso político de quem manda não hesita em ser um discurso de distorção e de ocultação. Vejamos dois exemplos.

O primeiro é o do discurso das previsões. O que separa o discurso das previsões das ciganas que leem a sina nas palmas das nossas mãos do discurso das previsões das grandes organizações económicas internacionais como a OCDE, o FMI ou a UE? Algo de fundamental: o primeiro é tido como crendice e não se lhe dá crédito na hora de decidir a nossa vida, ao passo que o segundo é tido como expressão de sofisticação analítica e, por isso, se lhe dá o crédito de controlar descontroladamente o crédito de que dispõem as nossas vidas. E, no entanto, as previsões das grandes organizações económicas internacionais são tão fantasiosas como as leituras ciganas da sina. Das 61 previsões sobre o crescimento económico na União Europeia feitas pelo Canco Central Europeu entre 2004 e 2011, 46 estavam erradas. Ainda em dezembro de 2010, a estimativa para o crescimento europeu em 2012 variava entre 0,6% e 2.8% - ora, a verdade, bem o sabemos, é que a economia europeia não cresceu, decresceu. As ciganas que leem a sina não fariam pior. Com uma diferença: é que, entretanto, as previsões (erradas) do Banco Central Europeu já provocaram efeitos devastadores irreversíveis: condicionaram as políticas que nos governam e deram cabo das vidas de muita gente.

Segundo exemplo: o discurso da dívida. O que separa o discurso da dívida feito por um merceeiro desonesto do discurso da dívida feito pela troika e pelos seus discípulos? Ambos usam o nevoeiro de uma contabilidade não auditada para exigir ao devedor coiro e cabelo, aquilo que ele deve e uma data de outras coisas que talvez se lhe faça acreditar que deve quando na verdade não deve. Mas o merceeiro desonesto é facilmente confrontável com a falta de seriedade da sua fatura e perde assim clientes, ao passo que, para a troika e os seus discípulos, quanto mais nevoeiro contabilístico mais poder e quanto mais poder mais destruição de economias, de países e de vidas concretas de pessoas concretas. Tudo irreversível, claro. Em nome da dívida, a troika e os seus discípulos decretaram desemprego, diminuição dos salários e das reformas, privatização de bens essenciais por tuta e meia, perda de direitos. Em nome da dívida, a troika e os seus discípulos preparam-se agora para degolar boa parte da administração pública, da escola pública e da segurança pública. E, no fim, a dívida não terá parado de crescer...

Este discurso que faz da mistificação o suporte de um poder que estraga vidas, economias e sociedades é o grande inimigo atual da democracia. A luta pela democracia é, hoje mais do que nunca, irmã da luta pelo primado da realidade da vida contra a ficção excel de engenharias sociais purificadoras e da luta pelo conhecimento aberto contra a mentira disfarçada de tecnicidade. Um conhecimento crítico da realidade é o que mais temem os inimigos da democracia.

Diário de Notícias, 11 de Janeiro de 2013