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NADA PARA A UCRÂNIA SEM A UCRÂNIA

Em 1998, com a autoridade que lhe advinha da sua longa experiência de diplomata e de historiador das relações americano-soviéticas, George Kennan advertiu: “acho que a expansão da NATO é o início de uma nova Guerra Fria. Creio que os russos reagirão de modo crescentemente adverso e que isso afetará as suas políticas. Penso que é um erro trágico”.

A advertência de Kennan vai ao essencial da chamada crise ucraniana. Com a vantagem de ter sido proferida em pleno auge da euforia liberal e da respetiva fé em que a democracia liberal e os mercados abertos alastrariam por todo o mundo, alicerçando uma ordem liberal global com a garantia de uma eternidade de paz democrática. 

A humilhação da Rússia seria um mero efeito colateral dessa epopeia triunfante do liberalismo. Algo encarado com desdém pelos arautos da paz pelos mercados, pois, para eles, a promessa certa era a da edificação de uma vasta zona de paz e de progresso na Europa Central e do Leste. 

Desdém tão grande que mandou às malvas a garantia alegadamente dada, em 1990, pelo Secretário de Estado norte-americano James Baker a Kikhail Gorbachov de que a contrapartida para a aceitação da reunificação alemã no quadro da NATO seria a garantia de que a aliança não avançaria um centímetro para Leste. Lá como cá, garantias que não ficam escritas são garantias vãs…

A tese da paz democrática serviu de cobertura a uma série de operações de regime change. A Ucrânia foi apenas uma. A Líbia, o Iraque, a Síria foram outras. Com os resultados que se conhecem, quer em termos de democracia. quer em termos de paz.

A tensão máxima que hoje se vive na fronteira entre a Ucrânia e a Rússia é o ponto de chegada de um caminho de afrontamento do estatuto de grande potência militar que o poder do Kremlin se esforça por manter, como compensação da sua irreversível subalternização económica e tecnológica. 

E, nesse processo, foi sempre claro a quem serve a NATO. Basta lembrar que a oposição de países europeus à nomeação da Ucrânia e da Geórgia para aderirem à NATO, feita unilateralmente por George W. Bush na cimeira de Bucareste de 2008, resultou na decisão de que ambos os países se tornariam membros da aliança, ficando só a data em aberto.

Diante de tudo isto, não basta dizer que uma solução política é preferível a uma solução militar. Claro que é. O problema é o conteúdo dessa solução política e a garantia de um caminho para lá chegar. Dos vários tópicos que integrarão essa solução, há dois que não podem ser ignorados e ambos implicam a coragem de regressar a elementos que nunca deviam ter sido desprezados.

O primeiro, é a garantia da independência da Ucrânia. O Memorando de Budapeste, de 1994, estabelecia o escrupuloso respeito, pela Rússia, da independência e soberania da Ucrânia, como contrapartida da manutenção da sua tutela sobre o arsenal nuclear instalado em território ucraniano. Uma solução política tem de ter como pressuposto a natureza intocável dessa garantia.

O segundo, é o respeito pela vontade dos/as ucranianos/as. Nas suas pretensões imperiais, Estados Unidos e Rússia pintam como sendo dos/as ucranianos/as aquilo que não é senão a sua própria vontade. O estatuto de neutralidade, fixado na Declaração de Soberania de 1990 e depois na Constituição da Ucrânia de 1996 correspondia ao equilíbrio de vontades entre as diferentes sensibilidades das gentes da Ucrânia. Por isso, esse pode ser um apoio essencial de uma solução política inclusiva.

Nada para a Ucrânia sem a Ucrânia – eis o que não pode ser afastado.

 Pubicado a 16 de fevereiro de 2022