Ao longo da pandemia que vivemos, muitas vozes sinalizaram a oportunidade de transformações profundas, dado que problemas há muito existentes se tornaram por demais evidentes. Urge concretizar esta oportunidade, também em Coimbra, no sentido de, finalmente, assumir como prioridade as pessoas e a comunidade, bem como a sua qualidade de vida em todas as dimensões: saúde, habitação, trabalho, ambiente, igualdade, educação, cultura, proteção em todas as vulnerabilidades através de redes coesas de solidariedade, fruição do espaço público.
Tornar a mencionar o desleixo a que Coimbra tem sido entregue pelos sucessivos executivos camarários é, infelizmente, uma banalidade tão triste quanto as ruas abandonadas da Alta e da Baixa
Tornar a mencionar o desleixo a que Coimbra tem sido entregue pelos sucessivos executivos camarários é, infelizmente, uma banalidade tão triste quanto as ruas abandonadas da Alta e da Baixa. A pandemia revelou-nos o quão fantasmagórico se tornou o centro histórico, onde alguns comerciantes resistem e projetos inovadores, com enorme investimento de coragem individual, são desprezados pelo governo municipal. Verificámos a precariedade da habitação, as desigualdades sociais agudizadas, o abandono de pessoas pobres, sem abrigo, imigrantes e idosas, e de crianças sem o amparo das escolas; sentimos a imensa necessidade de espaços verdes e da sua qualificação, bem como do cuidado com as ruas e praças; precisámos do comércio de proximidade e dos produtores locais, destruídos pelos hipermercados; faltaram transportes públicos e infraestruturas básicas de comunicação num território concelhio fortemente desigual; assistimos à desertificação com a ausência de estudantes e turistas, numa cidade que vive desta população flutuante e de visitas efémeras e que, por falta de qualidade de vida nesta dimensão ampla, não capta nem fixa habitantes.
A Câmara de Coimbra, aparentemente, reagiu de forma positiva na resposta imediata à pandemia, com destaque para a Acão Social, embora ainda falte o balanço das medidas anunciadas desde abril, e muitas delas careçam de maior duração. Foram, finalmente, realizadas obras há muito planeadas e que, estrategicamente, a Câmara reservou para habitual “mostrar de obra” propagandístico do ano que antecede eleições. Havia dinheiro em caixa, por falta de execução de tantas iniciativas cabimentadas, o que veio a calhar em pandemia, inclusivamente para o bolo de 16 milhões anunciado para o Plano Municipal de Estabilização Económica e Social. Este inclui medidas sucessivamente adiadas, outras que já deviam ter sido implementadas há muito, mas mantêm um baixo investimento (por exemplo, apoiar a conversão de alojamento local em “habitação a custos acessíveis” - 700 mil euros) e outras que não se entendem neste plano (o alargamento do sistema de videovigilância). Porém, Coimbra já se conformou ao “olha, foi tarde, mas veio”. Ganhámos uma praia no Rebolim, que tem sido importante para “fazer férias cá dentro”; ganhámos algumas (poucas) das ciclovias por que clamávamos há décadas; o Parque Verde mostra, finalmente, um avanço lento de obras nos bares, mas permanece maltratado e descuidado, o Mercado Municipal virá a ter espaço de restauração, e as esplanadas alargaram-se, por força do “distanciamento social”. Mas o que falta é também bastante óbvio.
É urgente criar habitação de qualidade para todas as pessoas, com rendas controladas e a salubridade básica e a sustentabilidade energética que muitas ainda não têm; limpar e qualificar o espaço público e animá-lo com jardins, recantos de convívio, em vez de prédios de betão com marquises no lugar de varandas; criar espaços para espetáculos ao ar livre dos artistas locais que, hoje, são quem dá vida às nossas ruas, em desespero de sobrevivência; aumentar os espaços verdes, de lazer, e para a prática desportiva, cuidando as freguesias rurais e dotando-as de trilhos para caminhadas na natureza; reforçar os pequenos centros de bairro, criando comunidades coesas em torno de comércio de proximidade, e fomentar a produção local de bens alimentares, com qualidade biológica, dinamizando mercados nas freguesias; melhorar muito o cuidado das pessoas vulneráveis, com reforço decisivo do investimento em políticas sociais que, em Coimbra, em anos “normais”, ficava sempre aquém da verba alocada para iluminação nas festas da cidade; criar creches públicas municipais e outros centros para acolher crianças em tempos livres, com fortes dinâmicas de exterior; disponibilizar bicicletas para uso coletivo como meio de transporte; criar coesão e igualdade territorial com uma rede reforçada de SMTUC e infraestruturas básicas, incluindo de telecomunicações; incentivar a criação de pequenas empresas locais com os saberes de pessoas desempregadas, projetos criativos e um comércio diferenciado, que exponha mais do que cortiça e voltados para o exterior.
Perguntam: E a economia, estúpida? É urgente perceber que tudo isto é já a economia que queremos. Para além disso, na era do teletrabalho, o que atrai gente e investidores para a cidade, para além de estímulos empresariais, é a qualidade de vida que um lugar singular e acolhedor oferece, nomeadamente a famílias jovens e diversas, que procurem segurança, mas também a fruição de estímulos múltiplos e contemporâneos para o corpo e a mente, em linha com dinâmicas culturais cosmopolitas.
Poderia continuar nesta enumeração, já que uma cidade que há décadas não é cuidada necessita, face à pandemia, de cuidados transversais que não podem ser adiados. A pandemia, com intermitências, estará para ficar. A transformação é que, definitivamente, não pode ser adiada.
Publicado no Esquerda.net - 17 de julho de 2020