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Empobrecer os pobres

Se, em 2010, quase metade da população portuguesa vivia no limiar da pobreza e um quinto (cerca de dois milhões de pessoas) era declaradamente pobre, todos os estudos apontam para a subida rápida para três milhões de pobres nos próximos meses. Três milhões de pessoas a quem os gurus da austeridade, como retribuição honrada e dedicada do investimento que o País fez na sua educação, dizem que viveram acima das suas possibilidades. Um terço do País. E as contas, como as do FMI e as do Governo, podem estar mal feitas: a essas cifras não vai o rendimento disponível mensal das famílias depois de pagos os créditos bancários - fosse a estatística calculada com esse cuidado e o número de pessoas com menos de 500 euros por mês seria ainda muito maior.

É um país assim, com uma mancha de pobreza que alastra como uma mancha de óleo - incorporando cada vez mais gente com habilitações escolares elevadas, percurso profissional qualificado e trajetórias de vida consolidadas, é um país assim que o Governo acha que tem de empobrecer. E para cumprir esse objetivo letal, o Orçamento agora apresentado ataca em três frentes. A primeira é a das prestações sociais. Entre 1993 e 2009, a proporção do rendimento auferido pelos 5% mais pobres da população teve um aumento assinalável. Mas todo esse aumento ficou a dever-se não a uma mais justa política de salários, mas, sim, a transferências diretas do Orçamento através de prestações como o rendimento social de inserção, o subsídio social de desemprego ou o complemento social para idosos. Não tivessem sido essas prestações e os números da pobreza em Portugal seriam já hoje muito mais arrasadores. Ora a radical mudança imposta por este Governo em matéria de prestações e políticas sociais, substituindo os princípios da universalidade e da titularidade por uma orientação sociocaritativa que desonera o Estado da responsabilidade pelo equilíbrio e pela coesão sociais e que opera cortes brutais nos montantes destas prestações, está a ter como consequência um agravamento dramático da intensidade da experiência de pobreza dos mais pobres em Portugal.

A segunda fonte de agravamento da pobreza neste Orçamento é a da agressão aos salários. No período referido (1993-2009), as desigualdades salariais em Portugal aumentaram por força dos aumentos brutais dos salários e prémios das chefias empresariais. Em 2009, os 10% de portugueses mais pobres tinham um salário médio de 458 euros, enquanto os 10% mais ricos recebiam em média sete vezes mais. A principal causa da pobreza é esta lógica salarial, que para aumentar muito uns poucos mantém muitos com pouco demais.

Por fim, o terceiro suporte orçamental da estratégia de empobrecimento é a política fiscal. Um Orçamento cujo enorme aumento de impostos se repercute proporcionalmente mais em quem recebe 800 euros do que em quem recebe dez mil euros é obviamente um instrumento de agravamento deliberado das desigualdades e de geração de pobreza.

Três milhões de pobres. Um milhão e meio de desempregados, mais de metade dos quais sem qualquer apoio social. Um Governo que olha para esta realidade e decide que a melhor estratégia é empobrecer não passava de certeza no exame do primeiro ano de qualquer curso de bom senso e de dignidade.

 Diário de Notícias, 19 de outubro de 2012