É possível fazer uma suposição, com risco assumido, e afirmar que este tempo será recordado na história como um ponto de viragem nas relações socio‑laborais. A evolução tecnológica é assombrosa: aqueles entre nós que têm algum poder económico, por norma, carregam consigo diariamente aparelhos cuja capacidade computacional é superior à dos computadores usados na missão Apollo XI em 1969. A estonteante mudança das tecnologias é difícil de acompanhar, pela sua característica de volatilidade constante, sendo amanhã obsoleto o que há dois anos se dizia vir mudar o mundo.
Muito há a ser escrito sobre o impacto que a evolução tecnológica tem nos métodos de produção, fazendo‑nos bater outra vez em velhas questões já colocadas aquando da primeira revolução industrial. A velocidade de alteração destes métodos é agora, no entanto, muito mais elevada e, fazendo‑se acompanhar por uma globalização desenfreada, torna difícil o seu balizamento em regulamentação laboral e fiscal que acautele os interesses dos Estados. O que por muitos e muitas é entendida como tecnologia democratizante e absolutamente liberalizada – no sentido da criação de confiança direta entre pares e dispensa de terceiros de funções para transações intermediárias –, pode também ser lida por outros como o esboroar dos sistemas normativos e institucionais atuais segundo os quais a democracia que nos é conhecida assenta.
De facto, a possibilidade de se estar permanentemente acessível a contacto exterior que a tecnologia corrente nos traz já produz efeitos conhecidos sobre os e as trabalhadoras, tendo acelerado o esbatimento das linhas que separam o trabalho da vida privada e do descanso obrigatório. Em 2017, o governo francês fez aprovar uma lei que pretende readaptar as leis do trabalho à era digital. Esta reforma veio no seguimento de deliberações do Cour de Cassation, um tribunal francês de última instância, que estabeleciam, em linhas gerais, que um ou uma trabalhadora não tem de aceitar nem trazer tarefas para casa, e que dispensa os e as trabalhadoras de se disponibilizarem via telemóvel ou correio eletrónico para responderem à entidade patronal fora do horário laboral estabelecido. Esta lei passou a ser conhecida como «Direito a Desligar», e foi apresentada como ferramenta para combater o burnout e o stress constante que afetam já uma parcela significativa dos trabalhadores, permitindo ainda definir mais claramente a vida pessoal e o trabalho. Há que notar, no entanto, que esta lei se aplica apenas a empresas com 50 ou mais trabalhadores, não havendo repercussão definida para a entidade patronal que não a cumpra (bem como o facto de ter sido introduzida dentro de um pacote de leis que facilitam despedimentos e reduções salariais).
Já alguns outros países europeus adotaram medidas semelhantes ou cujo propósito incide neste ponto: garantir a desconexão do trabalho, tanto física como mentalmente, e permitir o descanso e usufruto da vida pessoal. Algo que se resume simplesmente assume contornos mais difíceis de pragmatizar, dado que a mesma possibilidade de estar permanentemente contactável traz também coisas que podem ser entendidas como vantagens ao trabalhador, como a flexibilização dos horários laborais para ajuste das necessidades pessoais e a autonomia para definir momentos de trabalho fora do escritório.
Num mundo em que a evolução tecnológica permite o enriquecimento súbito e brutal de alguns poucos; num mundo em que o homem mais rico da China afirma, sem pudor, que trabalhar doze horas diariamente deve ser entendido como uma bênção, é absolutamente impreterível a união dos trabalhadores e trabalhadoras numa reivindicação por uma reforma das leis laborais e fiscais que melhor sirva quem produz.
Publicado em "Pão e Cravos" - Maio/Junho de 2019