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Defender a democracia local

O poder local pode e deve ser o esteio da democracia, aí onde a proximidade permite a boa articulação entre democracia participativa e democracia representativa e onde se enraízam as exigências de concertação, transparência e rigor.

Mas as autarquias estão a ser alvo do maior ataque de sempre por parte dos poderes governamentais que, ao serviço do capital internacional, querem empobrecer e anestesiar os portugueses.

A redução imposta e arbitrária das freguesias (com a agravante da chantagem: se te resignas são x, se não x+n) é paradigmática. Todos os argumentos aduzidos são falsos: a solução administrativa encontrada não é mais eficaz, nem mais económica, nem mais racional. E é claramente anti-democrática: porque a decisão foi tomada sem as populações e quase sempre contra as populações; porque não é legítimo que um governo, cujo mandato resulta de eleições legislativas, decida da extinção de outros órgãos de soberania legítimos, resultantes de processos eleitorais diversos.

Mas a extinção de freguesias foi apenas a primeira das medidas; outras estão na calha: a redução das competências dos órgãos deliberativos e consequente presidencialismo do executivo – entendido não como mandatado pela soberania popular local mas como um prolongamento do poder central; a concentração de meios e competências em órgãos não-eleitos e sem escrutínio de oposições, como foi tentado com as comunidades inter-municipais, (felizmente travadas pelo tribunal constitucional); e, é claro, o estrangulamento financeiro das autarquias até à sua quase paralisia.

Esta ofensiva não visa o poder local por engano. Sob o mentiroso pretexto de serem as autarquias despesistas, o que se quer é mesmo abater o poder local, que pode e tem resistido à sangria do país.

Ao longo das últimas décadas, as autarquias (municípios e freguesias) contribuíram decisivamente para o desenvolvimento e para a melhoria das condições de vida das populações. Cidades e vilas promoveram o crescimento económico, tiveram redes de água, saneamento e electricidade, tiveram equipamentos culturais e desportivos, tiveram estradas, escolas e jardins. E conseguiram-no com menores custos e maior eficácia do que o governo central o teria feito.

A maior parte dos autarcas fizeram certamente o melhor que souberam e puderam pelo bem-estar das comunidades que os elegeram. Terá havido algum excesso de ajustes directos, casos de compadrio ou de favorecimento. Mas é precisamente o reforço do escrutínio público que decorre da transparência e da valorização dos órgãos fiscalizadores colegiais que pode corrigir essas imperfeições. Pretender que os autarcas são políticos mais perdulários, mais corruptos, mais atrasados e iletrados, além de manifestamente falso, faz parte da campanha orquestrada contra o poder local.

Na verdade, muitos autarcas são incómodos ao poder central, mesmo quando pertencem aos mesmos partidos: têm-se batido contra o encerramento de serviços públicos, de linhas férreas a hospitais, de correios a tribunais; têm denunciado portagens penalizadoras do desenvolvimento e encerramentos de empresas; têm tido por vezes até o desplante de ser mais fiéis aos seus eleitores que aos seus partidos. Extinguir autarquias tem também essa leitura: não te portas bem, o teu cargo pode ser extinto.

Resta saber como resistem os autarcas dos partidos do poder à pressão das fidelidades contraditórias: se ousam afrontar o poder central e os aparelhos em defesa do bem comum ou se se acomodam a ser promotores da passividade e da resignação.

A democracia local pode e deve ser o primeiro instrumento de participação das populações no poder público, de intervenção nas decisões, de administração dos bens comuns, de escrutínio político. Defendamo-la.

Independente de Cantanhede, 12 de Junho de 2013