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Abaixo a guerra contra o coronavírus!

A utilização da metáfora da guerra para falar da pandemia e da resposta a ela, cunhada pelo Presidente da República e logo aproveitada pelo Governo, produziu um efeito de unanimismo e, com ele, de negação da política como campo da diversidade de caminhos e das escolhas entre eles. Como em outras “guerras” do mesmo tipo – a “guerra contra o mal”, a “guerra contra o terrorismo” ou a “guerra contra as drogas” – há na “guerra contra o coronavírus” uma definição simplificadora das disputas: de um lado está a ameaça, do outro está toda a gente, indiferenciadamente. A metáfora da guerra é usada precisamente para isso, para gerar essa moral de exército em que as diferenças de opinião se esbatem e quem nelas insistir facilmente é rotulado de desertor. Ao contrário do que escreveu Clausewitz, a guerra não é a continuação da política por outros meios, é mesmo a negação da política.

O consenso político que se formou em Portugal no primeiro momento da resposta à pandemia foi o que permitiu que essa resposta fosse desenhada e assumida com sentido de responsabilidade. Mas o seu alcance foi esse e não outro. O pior que podíamos fazer a nós próprios seria aceitarmos esse unanimismo guerreiro como novo normal, um estado de emergência informal que tira o chão à política como tensão entre diferenças e arena de escolhas.

Não há nenhuma unanimidade nacional sobre o layoff como rosto da austeridade, nem sobre a falta de apoios aos trabalhadores da cultura, nem sobre a contínua sangria de dinheiros públicos para o Novo Banco, nem sobre o número de alunos por turma, nem sobre a desregulação de horários e o esbatimento da fronteira entre vida pessoal e vida profissional que decorre do sobre-recurso ao teletrabalho. Os que beneficiam politicamente com o apagamento da política às mãos do espírito de união nacional fazem tudo para que estes temas de disputa não ocupem o centro do espaço público. E quem desvaloriza estes de contraste e coloca a ênfase da luta política exclusivamente noutros tópicos – como André Ventura, por exemplo – colocam-se objetiva e inequivocamente de um dos lados desses contrastes.

A quebra do consenso de excecionalidade e o regresso da política são indicadores de recuperação da saúde democrática. Porque eles serão sinais de que o constrangimento do medo foi substituído pela liberdade da escolha.

 

Publicado no "Diário As Beiras” - 20 de junho de 2020