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Requiem

O fim do consulado de Cavaco Silva é uma boa notícia para Portugal.

Cavaco Silva foi o Primeiro Ministro que, acalentado pelos milhões de Bruxelas, foi o primeiro e fundamental dos responsáveis pela criação do que mais tarde viria, ele próprio, a designar por ‘monstro’: um estado afogado em contração de crédito para aplicações cujo impacto qualificador beneficiou sempre uns poucos em detrimento da grande maioria. Cavaco sempre teve esse traço: líder de fação avesso a um exercício do poder pensado a partir do primado do povo sofrido. Esse seu apego ao seu grupo foi sempre tão arreigado que não hesitou em discriminar alguns dos melhores portugueses, como José Saramago, só por não concordar com eles.  

Cavaco Silva foi o Presidente da República que avalizou – e, mais que isso, legitimou e liderou não raras vezes – a política de austeridade. Foi, nessa escolha, o mais ideológico dos Presidentes, sempre do lado da liberalização das relações laborais, sempre do lado da transferência de rendimentos do trabalho para o capital, sempre do lado da supressão de direitos essenciais num Estado Social de Direito. Cavaco Silva foi o grande suporte da governação das direitas em Portugal, capaz mesmo de transformar o irrevogável de Portas na ressurreição do seu governo então moribundo. Na verdade, Cavaco Silva nunca se furtou a esforços para dar espaço à direita para aplicar o seu programa de desmantelamento dos serviços públicos e dos direitos sociais custasse o que custasse. 

Este domingo, Cavaco Silva torna-se um precário na política. Fica a prazo, sem direitos efetivos e com a noção de que ninguém mais o ouvirá. Sinal dos tempos: não é apenas o calendário que atira Cavaco para o baú de memórias infaustas, é o país que está a mudar e, neste país a mudar, Cavaco tornou-se numa anquilosada força de bloqueio. Apenas isso. 

Mas erra quem acha que depois de Cavaco quem quer que venha é melhor para Portugal. O cavaquismo tem muitos rostos e o seu programa tem muitos intérpretes. A nossa exigência tem que ser a máxima, agora mais que nunca. Não é de um Presidente da República com bonomias de circunstância ou com discursos redondos que o país precisa agora. É de alguém com um contrato claro com o povo para a defesa dos seus direitos e para a defesa do país contra quem, cá dentro ou lá fora, nos diminua a democracia. É isso que está em disputa. 

Publicado no Diário As Beiras, no dia 23 de janeiro.