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OS UTOPISTAS-DE-NUCA

Dirigindo-se à jota do CDS, Paulo Portas instou os jovens a que "deixem a utopia aos revolucionários e se ocupem da realidade e a servir melhor o vosso país”, advertindo que "foi em nome da utopia que se fizeram os piores totalitarismos do século XX que destruíram a liberdade e a vida de dezenas de milhões de seres humanos." Dias depois, Cavaco Silva decidiu marcar o fim da sua longa carreira de político profissional clamando que “a governação ideológica pode durar algum tempo, faz os seus estragos na economia, deixa faturas por pagar, mas acaba sempre por ser derrotada pela realidade".

A oposição de Paulo Portas à utopia é um truque e o repúdio de Cavaco pela ideologia é um embuste. Paulo Portas tem sido dos mais lídimos porta-vozes em Portugal das utopias liberais em que se ficciona que a liberdade é um atributo garantido a todos em concreto e se finge que o resultado dessa ficção não é a vantagem de poucos construída sobre o esmagamento de muitos. O primado da realidade sobre a ideologia defendido por Cavaco inventa uma oposição que não existe, porque tudo o que dizemos e tudo o que vemos sobre a chamada realidade é sempre filtrado por lentes ideológicas. Cavaco acha – e prescreve-nos - que só há uma realidade: a da precarização dos vínculos laborais e a da proteção máxima das “expectativas dos investidores”, sendo que tudo o que se lhe oponha é ideologia. A direita tem aliás feito uma síntese perfeita deste pensamento artificioso: a austeridade não é uma questão ideológica, a luta contra ela é.

Cavaco e Portas dizem-nos sobretudo que não imaginemos, que não nos distanciemos do que está e como está, que aceitemos “as regras”. Chamam a isso ser realista. Gonçalo M. Tavares, com uma lucidez desarmante, chama-lhes, sem os referir, “utopistas-de-nuca: para trás está a solução”. Sim, Portas e Cavaco são utopistas-de-nuca: o vitupério de Portas sobre a utopia e o disfarce de Cavaco como não ideológico são a forma de ambos proclamarem a sua fé na conservação de uma sociedade arrumadinha em cima da exploração e quietinha em cima das hierarquias e do respeitinho. São utopistas-de-nuca porque para eles a única transformação de que as nossas sociedades precisam é a que as aproxime o mais possível do liberalismo do século XIX. Realismo, dizem eles. Pelo sonho é que vamos, dizemos nós.  

 

Texto publicado no Diário As Beiras - 9 de janeiro