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Nem mafarrico, nem arcanjo

Os apregoadores de que “vem aí o diabo, só não sei é quando” e os arautos do “só não vê a nossa bondade quem não quer” precisam uns dos outros para se justificarem. Na interpretação da política portuguesa, o ceticismo doentio olha para o angelismo tonto e diz acidamente que tanta crença descambará em descarrilamento num instante. E o angelismo crente olha para o ceticismo cínico e diz acaloradamente que, contra tudo e contra todos, está construída uma larga e irreversível avenida de aumento da dignidade de todos. Uns e outros são míopes e só vêem o que querem teimosamente ver, não a realidade.

Após um ano de solução governativa protagonizada pelo PS com o apoio parlamentar dos partidos à sua esquerda, o que se pode concluir é apenas que a política não é nem ceticismo ressabiado nem crendice angélica. A política é tensão e negociação em vista do cumprimento de princípios de organização social. E este ano que passou foi isso, nem mais nem menos que isso.

A reversão das políticas agressivas da direita ocorreu como ocorreu porque a relação de forças no parlamento e na sociedade é a que é, em resultado das últimas eleições. O óbvio é que tivesse o PS tido maioria absoluta ou, mesmo maioria relativa, mas com outra conformação eleitoral dos partidos à sua esquerda e tudo teria sido diferente. Se este foi um ano em que, em vez de discutirmos a dimensão dos cortes nos salários e pensões, discutimos o valor de quanto eles aumentaram, isso fica a dever-se à força de pressão e negociação dos partidos à esquerda do PS.

Não, não é uma coligação. Nem uma frente. Nem uma aliança. É uma negociação permanente. Nem o ceticismo doentio nem o angelismo tonto alguma vez o perceberão. Nem nunca entenderão que esta é uma negociação que enfrenta um limite: o muro de betão das regras europeias vertidas no Tratado Orçamental. Este foi um ano que teve o condão de mostrar a toda a sociedade portuguesa que o que verdadeiramente nos condenou nas últimas duas décadas, e nos condena hoje, a taxas de crescimento medíocre e a um constante subfinanciamento dos serviços públicos fundamentais para uma sociedade como a nossa – educação, justiça, saúde, segurança social, cultura – foi e é a camisa de forças que impede que nos financiemos para sermos mais fortes e termos mais meios produtivos e financeiros para nos sustentarmos. O angelismo tonto e o ceticismo doentio são irmãos gémeos na negação desta evidência. E essa é uma batalha política essencial que terá que ser feita.

Um ano volvido sobre o início da atual solução de governo com o suporte político dos partidos de esquerda, o país está melhor e as pessoas têm um sentimento de maior justiça. Nada está seguro e a obediência às regras europeias, juntamente com o teimoso estado de negação sobre a absoluta necessidade de renegociarmos a dívida, perpetuará essa imensa fragilidade. Contra isto, nem ceticismo doentio, nem angelismo tonto. Nem mafarrico, nem arcanjo. Só política.

Publicado no Diário As Beiras - 10 de dezembro de 2016