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Liberdade de escolha, onde pode levar?

Estou certo de que, tal como eu, muitos milhares de professores há muito que não se viam a apoiar um ministério da Educação. Lá diz o ditado popular: “Mais vale tarde do que nunca”.

É necessário inverter a lógica de subfinanciamento e crescente desvalorização da escola pública, afirmando uma política de coragem que afronte os lobbies instalados e a chantagem dos interesses privados. Há que defender e valorizar a escola pública, requalificando-a, para que garanta o preceito constitucional de garantir a todos o direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar.

É justo, é legal e é desejável, do ponto de vista dos interesses públicos, o combate ao despesismo, bem como a racionalização dos contratos de associação, condicionando-os ao espírito da lei e às razões que justificaram a sua criação. Estes apenas se justificam em casos em que seja manifesta a ausência ou insuficiência de oferta pública e nunca como apoio financeiro ao funcionamento da iniciativa privada, que duplica oferta e concorre, na maior parte das vezes de forma desleal, quer com as escolas públicas, quer com as escolas privadas sem contratos de associação que, aliás, constituem a esmagadora maioria dos estabelecimentos particulares e cooperativos.

Em nome de uma pretensa “liberdade de escolha”, o que está verdadeiramente em causa é a manutenção do negócio privado da educação, bem como uma agenda política e ideológica que lhe subjaz e almeja um caminho de desestruturação do ensino público e de mercantilização do ensino.

Pôr fim às rendas privadas, asseguradas por dinheiros públicos, é uma prioridade. Há que reforçar o investimento nas escolas públicas, contrariando as políticas de cortes sucessivos que conduziram ao seu subfinanciamento, potenciando a deterioração da qualidade do serviço educativo.

A “liberdade de escolha” é o canto da sereia de conservadores e neoliberais, como estratégia para desestruturar a escola pública e promover a progressiva privatização do ensino. Os lobbies dos interesses privados e as forças económicas e políticas que os sustentam pretendem criar um mercado interno da educação. Defendem que através da competição entre escolas públicas e privadas, as escolas e a qualidade de ensino ganhariam eficiência e qualidade. É nesta perspetiva que emerge a ideia de “liberdade de escolha” por parte das famílias, que desejavelmente seria assegurada pelo sistema de cheques de ensino, à semelhança do que acontece com as charter-schools americanas, as free-schools inglesas, ou ainda as escolas independentes suecas, em que o Estado financia escolas geridas por privados.

Conservadores e neoliberais advogam, em conformidade, a separação entre funções de regulação, financiamento e prestação de serviço educativo desempenhado pelo Estado.

Acerca deste problema, a insuspeita OCDE, em relatório, relativamente recente, veio afirmar que a maior liberdade de escolha da escola está associada a maiores diferenças na composição social dos públicos escolares, evidenciando uma forte correlação entre liberdade de escolha e segregação escolar(1). Onde estas políticas educativas foram postas em prática, a tendência é para criar escolas de primeira e de segunda, que agravam as assimetrias sociais, sem ganhos na qualidade de ensino e das aprendizagens.

Como refere, Diane Ravitch(2) - que na década de 90 desempenhou o cargo de secretária-adjunta de Educação e conselheira do secretário de Educação na administração de George W. Bush, tendo sido uma das impulsionadoras da lei programa No Child Left Behind (NCLB), que está na origem do fecho de centenas de escolas públicas e da sua entrega à administração privada - os resultados empíricos da reforma educativa americana não permitem afirmar que as escolas administradas por concessão privada apresentem melhores resultados escolares. Segundo a mesma autora, o que se verificou foi que as escolas administradas por concessão têm capacidade para atrair e selecionar os estudantes mais motivados, provenientes de famílias mais favorecidas, que apoiam e estimulam a educação, o que lhes permite captar mais recursos financeiros, nomeadamente, através de fundações. Dispondo de mais recursos podem oferecer turmas mais reduzidas e mais tempo para atividades de aprendizagem e de enriquecimento curricular. Os alunos com mais dificuldades e menor motivação, não encontram outra alternativa se não as escolas públicas. A privatização das escolas tende a criar um sistema de dois níveis cada vez mais desigual, não respondendo ao desafio central que é o de como educar todos os estudantes.

Mais recentemente, Diane Ravitch, assumindo os erros da orientação expressa na lei NCLB, que impôs o fecho de escolas públicas que não conseguiram atingir as metas de resultados estabelecidas, criticou a política de privatização do ensino continuada pela administração Obama, afirmando que as escolas públicas “estão em crise graças a ataques persistentes e orquestrados que lhe são dirigidos […] e que ferem os princípios básicos da responsabilidade pública da educação. Estes ataques criam um falso sentimento de crise e servem os interesses de quem quer privatizar as escolas”(3).

Na Europa, a Inglaterra e a Suécia são sistematicamente apresentados como modelos a seguir na criação de autênticos mercados internos de educação, assentes na liberdade de escolha das famílias. O caso sueco é paradigmático. Desde os inícios da década de 90 que instituiu os cheques ensino entregues às famílias para que possam escolher a escola para os seus filhos. Cerca de 25% dos alunos do ensino médio da Suécia frequentam escolas financiadas com recursos públicos, mas administradas pela iniciativa privada. Grande parte dessas escolas privadas é controlada por empresas de “private equity”e grandes corporações que administram centenas de estabelecimentos educativos. Entretanto os resultados escolares obtidos pelos alunos suecos no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) sofreram uma acentuada queda, classificando a Suécia atrás de Portugal nas competências de Matemática, Leitura e Ciências.

Na Suécia, o poder político colocou na agenda política a necessidade de reverter a orientação das políticas educativas assentes na desregulamentação da educação e na liberalização do mercado educativo, que o abriram à iniciativa privada com fins lucrativos.

Em Portugal, deveríamos aprender com este exemplo, que serviu de bandeira aos defensores da liberdade de escolha e do cheque ensino, evitando opções que se revelaram erradas e com efeitos tão fortemente negativos.

Notas:

1 -  OECD. No more failures: ten steps to equity in education. Paris, OECD, 2007

2 - Ravitch, Diane, Vida e morte do grande sistema escolar americano: como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação. Porto Alegre: Sulina, 2011.

3 -  Diane Ravitch, Reign of Error: The hoax of the privatization movement and the danger to america’s public schools. New York: Knopf, 2013, cit. in Viseu, Sofia. (2014). Revisitando o debate sobre o público e o privado em educação: da dicotomia à complexidade das políticas públicas. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação, 22 (85), 899-916. (http://hdl.handle.net/10451/12393)