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Hanau

Em Junho do ano passado, o presidente da província de Kassel sofreu um ataque à porta de sua casa pela sua política de apoio a refugiados. No dia 9 de Outubro do ano passado, em Halle, um alemão, de 27 anos, disparou várias vezes à porta da sinagoga da cidade. Seguiu para o cemitério hebraico e disparou, continuou para um restaurante de kebab e disparou. No final, duas pessoas morreram, no que poderia ter sido um massacre. Há cerca de uma semana foi detida uma célula de 15 extremistas alemães que planificavam um atentado em larga escala: um ataque articulado a várias mesquitas no país. Esta semana, foi o horror que se viu em Hanau. Um alemão, de 43 anos, matou nove pessoas e feriu gravemente cinco, antes de se matar, assim como à sua mãe, na sua própria casa. Antes do atentado, publicou um vídeo no facebook onde detalhava o que ia fazer. As vítimas tinham em comum o facto de serem imigrantes, curdos na sua maioria, um jovem bósnio e uma mulher polaca. Entre as vítimas, estava ainda uma mulher grávida.

Os atentados terroristas de extrema direita começam a dar sinais na Alemanha e com consequências trágicas. A chegada a cargos institucionais por parte do partido de extrema-direita AfD não se traduziu numa perda de força, mas antes numa normalização que é perigosa. Vimos recentemente o que se passou na Turíngia. A eleição de um governador de extrema-direita com o apoio do partido de Angela Merkel, CDU. O escândalo levou à demissão da Presidente da CDU alemã, mas o precedente criou-se.

De cada vez que se abre um espaço mais à extrema-direita, mais se naturaliza a sua existência e se silenciam ideologias que estiveram já na origem de crimes atrozes. Mesmo na Alemanha, o país que viveu os mais atrozes desses crimes, ser-se de extrema-direita já não acarreta o mesmo estigma que há alguns anos. As tentativas de “aproximação” por parte de partidos democráticos aos programas destes partidos ou o, tantas vezes já visto, branqueamento da mensagem dos partidos extremistas por parte de alguns órgãos de comunicação social ajudam a limpar a imagem.

Mesmo tendo um país quase inteiro a condenar os atentados esta semana ocorridos em Hanau, é inevitável pensar na forma como se criam estas naturalizações. O atentado de Hanau não teve honras de destaques noticiosos, nem dias de buscas de detalhes, nem dados sobre as vítimas e as suas famílias. O tratamento público que é dado aos atentados não é sempre o mesmo. Há dois pesos e duas medidas. São esses pesos e essas medidas que vão ajudando o monstro a crescer. Quando não há o “outro” para atacar, parece proteger-se mais o agressor que as vítimas. O preço desta transigência permanente é cada vez mais caro.

Publicado no “Diário de Notícias” - 22 de fevereiro de 2020