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A gestão privada do público

A tese de que a gestão pública, para ser eficiente, tem que ser privada tem sido uma das armas de arremesso do liberalismo. A ofensiva liberal abjura tudo quanto é Estado, salvo quando o mesmo Estado é fundamental para garantir nichos de renda ou de negócio aos liberais. E, nessa abjuração, os liberais juntam os hossanas à privatização da propriedade e os hinos à privatização da gestão. O que importa mesmo é diminuir o Estado e privatizar.

Dois exemplos recentes. Primeiro, dizem-nos os liberais que a administração da Caixa Geral de Depósitos tem que ser “profissional” querendo isso dizer que tem que seguir os modelos de gestão de um banco privado, a começar pelo salário dos administradores e por uma cultura de casta patente na discrição e opacidade dos seus rendimentos. Segundo, dizem-nos os liberais que uma universidade pública, para ser eficiente, tem que ser uma fundação, ou seja, tem que ser gerida por normas de administração típicas do setor privado.

Esta tese de que eficiência e Estado não casam é velha e é mentirosa. Fosse verdade que salários milionários e regime de responsabilidade de exceção para os administradores seria mesmo sinónimo de gestão bancária competente e não teriam existido os sucessivos cambalachos que têm sangrado o erário público (ah, é verdade, para verter dinheiro público para salvar bancos privados os liberais adoram o Estado). Quanto às universidade-fundação, ninguém pergunta para que serve a apregoada agilidade adicional de gestão? É que se serve para que a contratação de trabalhadores docentes e não docentes se passe a fazer por contratos individuais de trabalho, sabemos que isso tem um nome: precarização. Mas, mais que isso, sabemos que nas universidades-fundação, só 50% do orçamento total da universidade virá do Estado sendo os outros 50% responsabilidade das próprias universidades. Se a isto juntarmos o poder que numa universidade-fundação tem o conselho de curadores onde, invariavelmente, tem assento o mundo da finança ou dos negócios, sabemos que isso tem um nome: subordinação da investigação e da agenda formativa à lógica empresarial privada e desinvestimento em áreas como as ciências sociais ou as humanidades, patenteamento dos resultados da pesquisa e não acesso aberto e responsabilidade social densa da produção de conhecimento.

Uma gestão pública que seja pública – isto é, que eficientemente reforce o primado dos bens públicos e dos serviços públicos – esse é o desafio da democracia. O resto é nevoeiro ideológico para legitimar áreas de negócio apetitosas e a miniaturização de um Estado que dê força à democracia.

Publicado no Diário As Beiras - 26 de novembro de 2016