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Direito(s), Orgulho e Preconceito – mas já não está tudo feito?

No mês de junho, é usual o espaço público se ver engalanado com as cores do arco-íris, desde logo graças à realização das marchas LGBTQIA+ – só em Portugal, são já mais de duas dezenas espalhadas por todo o país. São elas “cada vez mais políticas e cada vez mais festivas, por fazerem da celebração um protesto e da reivindicação política uma festa” (1).

Em tais eventos celebram-se, entre outras coisas, as principais conquistas jurídico-políticas de um longo percurso histórico de resistência contra todo o tipo de experiências individuais e coletivas de opressão e discriminação fundadas na orientação sexual, na identidade de género, na expressão de género e nas caraterísticas sexuais. Recorda-se o ontem, reafirma-se a força de hoje, lançam-se as bases para as conquistas de amanhã.

O caminho para que cada pessoa seja livre de ser e de amar tem sido profundamente tortuoso – ainda hoje, encontra-se marcado por uma série de barreiras erigidas por lógicas cisheteropatriarcais. Dessas barreiras emergem múltiplos conflitos, os quais continuam a colocar em causa a integridade, a saúde, o bem-estar e até, em alguns casos, a vida das pessoas LGBTQIA+. Um conflito que se inicia na esfera mais íntima de cada pessoa, colocando em confronto quem realmente é e quem a fazem querer ser (já escrevia Jane Austen, no romance que inspirou o título deste artigo: “em vão tenho lutado comigo mesmo; nada consegui.”). Um conflito que se estende, depois, para a esfera familiar e convivencial, entre sentimentos de medo da rejeição e violência ou de alívio pela aceitação e cuidado. Um conflito que é, por fim, atiçado e legitimado por uma superestrutura jurídico-política tantas vezes funcionalizada em prol de um sistema capitalista, patriarcal e neocolonialista que só sobrevive enquanto perdurarem as lógicas de dominação que o alimentam. Só o socialismo poderá, portanto, abrir as portas à construção de uma sociedade verdadeiramente inclusiva, livre, igual e fraterna, assente numa lógica intrínseca de justiça social para todos e para todas. Também por isso não é possível dissociar a luta LGBTQIA+ da luta anticapitalista.

Em Portugal, é preciso chegar-se ao ano de 1996 para se encontrar algum registo das palavras “homossexual”, “gay”, “lésbica”, “bissexual” ou “transgénero” em debates parlamentares (Ana Cristina Santos). Até essa data – e particularmente até à fundação do Bloco de Esquerda em 1999 –, as necessidades e anseios das pessoas LGBTQIA+ eram simplesmente ignoradas ou rejeitadas pelo poder político; os direitos e liberdades humanas e fundamentais de pessoas não heterossexuais e não cisgénero eram, por sua vez, denegadas arbitrariamente. Durante muito tempo, as normas jurídicas foram, portanto, utilizadas como meros aparelhos de discriminação e violência contra pessoas e grupos. Podia este ‘direito’ ser verdadeiramente Direito? Estou em crer que não, por lhe faltar a dimensão ético-axiológica que obriga a ordem jurídica a reconhecer que todo o indivíduo é, antes de mais, pessoa – não uma pessoa abstrata, mas uma pessoa com um modo concreto de ser e de viver, o qual deve ser plenamente respeitado. Ignorar esta exigência é negar à pessoa todo o seu valor – e tal é absolutamente impensável. Mas, durante muito tempo, esse ‘direito’ aí esteve e é preciso lembrar que as conquistas jurídico-políticas a que nos referimos supra foram, todas elas, fruto de uma resistência marcada pelo sangue e suor de muitas pessoas que, colocando a sua vida em risco ou mesmo entregando-a a tal causa, lutaram por uma real igualdade nas ruas e em tantos outros espaços públicos.

Mas, afinal, que conquistas são essas? Desde logo, é preciso não esquecer que, durante décadas, o Código Penal português puniu “a prática habitual de vícios contra a natureza” (referia-se a lei às “práticas que agredissem o princípio básico da moral sexual” e o “primado da sexualidade genital e da reprodução”), situação que só conheceu fim em 1982, com a revogação das ditas normas. Apesar disso, nessa mesma alteração legislativa, introduziu-se no dito código um “crime de atos homossexuais com crianças” (o qual previa a aplicação de uma pena mais gravosa do que a prevista quando a mesma conduta fosse realizada em termos ditos heterossexuais... situação que se prolongou até 2007, ano em que finalmente se logrou eliminar o tipo de crime diferenciador de atos praticados sobre pessoas do mesmo sexo). Por sua vez, no plano jurídico-constitucional, foram marcantes as revisões constitucionais de 1997 e de 2004. No primeiro caso, procedeu-se ao reconhecimento do direito ao desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º, n.º 1, da CRP). No segundo, logrou-se a inclusão expressa da ‘orientação sexual’ no rol de categorias suspeitas do artigo 13.º, n.º 2, da CRP, o qual consagra o denominado ‘princípio da não-discriminação’. Já no plano legal, destaca-se a adoção de medidas de proteção das uniões de facto, independentemente do sexo (2); a consagração do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo (3); a eliminação da discriminação no acesso à adoção, apadrinhamento civil e demais relações jurídicas familiares (4); o alargamento do acesso à procriação medicamente assistida (PMA) a todas as mulheres, independentemente do seu estado civil ou orientação sexual (5); na proibição da discriminação em razão da orientação sexual e da identidade de género na elegibilidade para dar sangue (6). No que especificamente à identidade de género diz respeito, lembremos a aprovação da primeira Lei da Identidade de Género (7), cujo modelo médico veio a ser substituído pela nova Lei da Identidade de Género (8), a qual consagra um verdadeiro direito (fundamental) à autodeterminação da identidade de género e expressão de género, sem esquecer as pessoas intersexo e a necessária proteção das suas caraterísticas sexuais. As referências à proibição da discriminação em razão da orientação sexual – e, em alguns casos, da identidade de género – espraiam-se também por vários diplomas legais em matéria laboral, de desporto, execução de penas e medidas privativas da liberdade, deveres especiais do pessoal policial, habitação, comunicação social e publicidade, educação sexual, liberdade de circulação, procedimento administrativo, seguros, requerentes de asilo e refugiados.

Mas se assim é, alguns poderão perguntar: já não está tudo feito? Valerá a pena continuar a sair à rua, a nutrir os ativismos e a mobilizar as massas sociais, a educar e a formar, a reivindicar direitos, enfim, a resistir? A resposta a todas estas questões não pode deixar de ser positiva e explicarei porquê em quatro breves pontos:

 

Não, não está tudo feito!

1) O nosso sistema jurídico continua a possuir lacunas que devem ser suprimidas e normas que podem ser aperfeiçoadas. No primeiro caso, chamo à atenção para a necessidade de se incluir expressamente a ‘identidade de género’ e as ‘caraterísticas sexuais’ na lista de categorias suspeitas do artigo 13.º, n.º 2, da CRP; de se levar avante a criminalização das chamadas ‘terapias de conversão’, que alguns têm lamentavelmente reputado de desnecessária; e de se aprovar medidas para garantir o exercício do direito à identidade de género, expressão de género e do direito à proteção das caraterísticas sexuais no âmbito escolar, assim colocando um fim aos efeitos nefastos causados pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 474/2021, de 29 de junho. No segundo caso, darei apenas como exemplo a necessidade de se alterar a Lei da PMA, fazendo cessar a flagrante discriminação a que estão sujeitos casais homossexuais masculinos e homens solteiros; no caso da identidade de género, importa começar a debater seriamente a possibilidade de reconhecimento jurídico de identidades não-binárias ou, pelo menos, de um “género neutro”.

2) Infelizmente, a mera consagração de direitos e liberdades na Constituição e na lei não assegura, per se, que os mesmos são devidamente respeitados, protegidos e promovidos. E muito falta fazer ao nível da efetivação das normas já aprovadas, assim assegurando que o seu cumprimento estrito por todas as entidades públicas e privadas, em todos os contextos. Também esta deve ser uma preocupação específica dos juristas, principalmente daqueles encarregados da aplicação do Direito nos tribunais, os quais se devem assumir como verdadeiros garantes da dignidade e dos direitos e liberdades de todas as pessoas, principalmente das mais vulneráveis. A par disto, não posso deixar de realçar a importância da educação no processo de construção de uma sociedade mais inclusiva (e nem se refira que tal acarreta uma ameaça de captura do processo educativo pela dita “ideologia de género”, já que o que está verdadeiramente em causa é tão-só a promoção dos valores tutelados pela nossa Constituição).

3) “Ninguém pode ser completamente livre até que todos o sejam” – esta é outra razão pela qual a resistência individual e coletiva continua a ser tão premente. Infelizmente, são ainda vários os países onde a homossexualidade continua a ser considerada um crime (e punida, inclusive, com pena de morte ou pena de prisão); onde as ‘rainbow families’ não são juridicamente reconhecidas ou são simplesmente relegadas a um estatuto de inferioridade face às demais; onde as pessoas trans são invisíveis para a ordem jurídica ou sujeitas a procedimentos médicos destinados a ‘atestar’ a sua identidade, colocando o seu destino nas mãos de terceiros; onde as pessoas LGBTQIA+ são sistematicamente perseguidas e violentadas por serem quem são e por se permitirem amar quem quiserem. Pelo fim de tudo isto, vale a pena continuar a lutar – aqui e em todos os cantos do globo.

4) A ascensão da extrema-direita e do conservadorismo tem ameaçado colocar em causa muitos dos direitos e liberdades até agora conquistadas. E, claro, é ingénuo confiar num qualquer princípio do não-retrocesso – a história já nos demonstrou de que este de nada serve quando tais forças assumem o poder e lançam mão das ferramentas à sua disposição (nomeadamente, do Direito) para prosseguir a sua agenda e consolidar o seu domínio. Assim, resistir é preciso, pois nada está garantido.

Mas já não está tudo feito? Não, não está tudo feito! E a esquerda – a esquerda anticapitalista, feminista e anticolonialista – cá estará para continuar a fazer tudo aquilo que precise de ser feito para garantir que todas as pessoas podem viver uma vida boa... o que também pressupõe a liberdade de ser e amar, sem barreiras nem fronteiras, sem mordaças nem amarras.

 

Notas:

1. Cf. ‘O orgulho contra o conservadorismo’, Documento orientador do I Fórum LGBTQI+ do Bloco de Esquerda, o qual teve lugar, no Porto, nos dias 11 e 12 de fevereiro de 2023.

2. Lei n.º 7/2001, de 11 de maio.

3. Lei n.º 9/2010, de 31 de maio.

4. Lei n.º 2/2016, de 29 de fevereiro.

5. Lei nº 17/2016, de 20 de junho.

6. Lei n.º 85/2021, de 15 de dezembro.

7. Lei n.º 7/2011, de 15 de março.

8. Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto.

 

Publicado em Esquerda.net a 30 de junho de 2023