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DE NOVO OS EMPECILHOS

No encerramento do debate do orçamento, António Costa abriu a campanha eleitoral, anunciando o que vai ser a linha discursiva do partido que dirige para esta disputa: o pedido de uma maioria absoluta para o PS (ou, na versão “eu nunca pedi tal coisa”, uma “maioria clara e reforçada”). E tal orientação está a ser largamente partilhada nas colunas de opinião e nas redes sociais. É a reedição da recriminação dos partidos à esquerda do PS como “empecilhos” à governação, feita por um destacado deputado socialista na véspera das eleições de 2019.

Vale a pena recuar a 2015 e lembrar que os entendimentos que permitiram a governação do PS, sendo acordos de mínimos, tiveram no seu centro medidas que foram muito para lá do programa com que António Costa se apresentara às eleições. Por exemplo, onde o programa do PS previa o congelamento das pensões, os entendimentos à esquerda impuseram a subida dos seus montantes; onde o programa do PS previa aceitar a figura do despedimento conciliatório, os entendimentos à esquerda afastaram essa ameaça ao mundo do trabalho. E foi assim não por boa vontade do PS nem por “sentido de responsabilidade” dos partidos à sua esquerda – foi assim porque a relação de forças saída das eleições de 2015 abriu espaço para que assim tivesse sido.

De 2019 em diante, as coisas mudaram. Contraditoriamente. Por um lado, aumentou a exigência de mudanças estruturais que fossem muito além dos acordos de mínimos do tempo anterior. Mas, por outro lado, eleitoralmente reforçado – em termos absolutos e em relação aos partidos à sua esquerda – o PS passou a querer entendimentos à peça à esquerda e de regime (legislação laboral, parcerias público-privado, sistema financeiro) com a direita. Sem empecilhos, portanto, como diria o inspirado porta-voz parlamentar de António Costa. A esquerda que se remetesse a conseguir detalhes e ritmos para o cumprimento de medidas do programa do PS, nunca para além dele, era assim que devia ser.

Com uma direita engalfinhada nas suas guerras fratricidas, o que estará em jogo nas eleições de janeiro será pois isto: aceitar o spin do atual Governo de que é precisa uma maioria absoluta para que o PS possa governar sem empecilhos ou dar à esquerda força para que as políticas vão claramente além do programa do PS. Uma maioria absoluta para manter, sem sobressaltos, os cortes nas indemnizações por despedimento ou nos dias de férias em que o PSD e o CDS foram além da troika, para não operar as medidas de reforço do SNS, para manter as penalizações injustas nas pensões é tudo que não precisamos. Do que precisamos, isso sim, é de uma esquerda forte para romper com que empecilhe sem transigências os que querem fazer vingar essas políticas.

Pubicado no Diário as Beiras - 2 de novembro de 2021