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Vinte anos a mudar

Olhamos para trás vinte anos e vemos um país em que hierarquias sociais ancestrais – dos homens sobre as mulheres, do capital sobre o trabalho, dos brancos sobre todos os outros – estavam blindadas pelo silêncio. Olhamos para trás vinte anos e vemos um país de consensos quietos – sobre a Europa, sobre o sigilo das fortunas, sobre o não-metas-a-colher nos gritos das mulheres espancadas no andar de cima – que a política feita cerimonial engravatado perpetuava por ação e por omissão. Olhamos para trás vinte anos e vemos um país em que a esquerda política se enredava nos seus bloqueios e na sua tibieza e deixava a direita económica tranquila.

O Bloco de Esquerda veio à política para estilhaçar essa blindagem, para sacudir essa quietude e para desbloquear essa rigidez. Os dois deputados dentro do hemiciclo, mas rompendo os cânones da política quieta mantendo-se serenamente de pé, não resignados a uma arrumação que subvalorizaria as gentes que os haviam elegido, marcaram um caminho apontado a essas ambições grandes.

De cada vez que um passo nesse sentido foi dado, houve rasgar de vestes pelos guardiões do status quo. Despenalizou-se o consumo das drogas leves e ai jesus que vem lá o paraíso do tráfico. Tornou-se a violência doméstica crime público e soem as trombetas que é um ataque sem precedentes à privacidade. Denunciou-se a sobreexploração dos imigrantes e fechem as comportas que vem aí a nova invasão dos sarracenos. Mobilizou-se gente contra as guerras – sempre humanitárias e democráticas, pois claro – e desmascarem-se severamente os préstimos ao inimigo da civilização ocidental.

O Bloco trouxe mais direitos a uma sociedade cheia de obrigações dos muitos de sempre para com os poucos do costume. Radicalizou as políticas de igualdade e de diferença porque a superfície da lei escondeu sempre uma raiz social e económica funda de discriminação e de poder desigual. Porque é na raiz da desigualdade e da discriminação que a blindagem dos consensos quietos se combate, o Bloco veio disputar a hegemonia da política ditada pelos bancos, pelos donos de Portugal e da Europa. Fa-lo hoje com mais força e mais poder. Por isso com uma exigência sobre si sempre a crescer também. As vestes dos de cima rasgam-se de novo, ora bradando contra a sovietização ora desdenhando do que chamam ‘institucionalização’. É bom sinal.

Estes vinte anos foram apenas um passo. Nesse passo, o Bloco mudou muito o país. Mas o combate contra a blindagem das hierarquias classistas, patriarcais ou racistas, a luta contra a política-ritual e o compromisso com o desbloqueamento de uma esquerda apostada em ser alternativa atuante e não alternância nem treinador de bancada – isso é uma caminhada grande. Não nos falta energia para a fazer.

Publicado no "Diário “As Beiras” - 2 de março de 2019