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Uma política para o fim da vida

Morre-se mal em Portugal. Morre-se em solidão, em confusão, em silêncio, em degradação. E, grande parte das vezes, tudo isto é contrário à vontade ou à aspiração da pessoa que morre. Onde se queria afeto, têm-se máquinas; onde se queria serenidade, tem-se stress sofrido; onde se queria respeito, tem-se anonimato. E, mais que tudo, onde se queria poder escolher tem-se decisão por outrem, em nome da ciência, da técnica, da religião ou do que for.

A política do fim de vida é hoje um dos campos mais importantes da densificação da dignidade. A biopolítica – isto é, as políticas da vida muito para lá da sua aceção biomédica – foram sempre um terreno de disputa entre imposição e direitos. Aquilo a que chamamos direitos humanos é uma constelação, em expansão, de expressões de emancipação das vidas diante das lógicas de autoridade e de controlo. Essas lógicas foram sendo ditadas pelo domínio de classe mas também pelo domínio de género, pelo domínio racial e por tantas outras formas de domínio.

Não é por acaso que os pontos de aceleração do universo dos direitos humanos foram sempre aqueles em que a emancipação foi protagonizada pelas vítimas das políticas da vida dominantes e consensualizadas: os trabalhadores, os escravos, as vítimas de racismo, as mulheres, as vítimas de discriminação em função da orientação sexual, os povos colonizados. As suas lutas foram sempre escandalosas e blasfemas, feitas em nome de um acesso a uma vida plena daqueles/as que dela foram considerados/as como “compreensivelmente” arredados/as pelos códigos de dominação de cada tempo.

A política do fim de vida inscreve-se nesta disputa. Afirmar os direitos das pessoas em fim de vida é tão difícil e controverso como foi, no passado, afirmar direitos de todos os colocados em condição de periferização social. Há passos dados: o testamento vital e a obrigação de respeito pela recusa de ser submetido a determinadas abordagens terapêuticas, ou a proibição do encarniçamento terapêutico são expressões dessa afirmação de uma biopolítica de emancipação. Mas são apenas uma parte do caminho dessa política.

E é por isso que, quando, tantas vezes, se afirma que é preciso humanizar a morte, convém clarificar o alcance do que se está a dizer. Porque não pode ser apenas uma suavização do drama do fim. Tem que ser mais que isso. A morte em paz a que cada um/a tem direito tem que ser o resultado da sua escolha livre e consciente de todo um universo de coisas que a medicalização da morte não contempla. A política do fim de vida é, pois, um campo por excelência da luta pelos direitos que exprimem a emancipação. Um campo de disputa entre escolhas diferentes.

Publicado no Diário As Beiras” - 27 de maio de 2017.