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A surpresa de Costa

António Costa confessou a sua surpresa com a reação de artistas e criadores aos resultados do concurso para os apoios públicos às artes. É uma surpresa que surpreende. Porque não é preciso ser especialista na matéria para saber que, no dossiê ‘cultura’ – como em todos os demais dossiês de política pública - se tem avolumado a tensão entre dois modelos de país e que essa tensão, mais dia menos dia, irrompe em protesto social.

O que foi politicamente mais relevante nos anos que levamos de Governo do PS com apoio parlamentar à esquerda foi a perspetivação do regresso à mobilidade social ascendente dos de baixo como horizonte da ação do Estado. Isso traduziu-se essencialmente em dois compromissos fortes: o combate à precariedade e o reforço dos rendimentos, quer diretos (salários e pensões) quer indiretos (acesso a serviços públicos e respetiva qualificação), de quem tem menos.

Na verdade, estes dois compromissos são o coração dos entendimentos entre o PS e os partidos de esquerda e são a chave do suporte social à solução governativa iniciada em 2015. Um suporte político e social que se é ofendido, portanto, quando o combate à precariedade não é concretizado e se perpetua a condição precária ou quando, no dia a dia dos hospitais, das escolas ou dos transportes públicos, se constata que, em vez da qualificação esperada há uma desqualificação que penaliza sempre quem tem menos.

Ora, aqueles dois compromissos da governação têm estado sempre em tensão com um terceiro compromisso forte do Governo: fazer do défice zero um imperativo e fazê-lo pressionando para baixo a despesa social ao contrário do que faz no financiamento público dos operadores privados (nas estradas, nos bancos ou nos hospitais, por exemplo). Tensão não é necessariamente sinónimo de contraposição. Mas acreditar que é possível cumprir os três compromissos ao mesmo tempo e em igual medida é uma evidente ilusão. Que seja o Ministro da Saúde, rosto de um incumprimento manifesto do compromisso de qualificação dos serviços públicos, a proclamar o slogan “somos todos Centeno” tem, a este respeito, muito de emblemático.

A revolta causada pelos resultados dos concursos de apoios às artes é a expressão da frustração pelas escolhas do Governo entre dar prioridade ao cumprimento dos compromissos de combater a precariedade e ao reforço dos rendimentos de quem tem menos e dar prioridade ao compromisso de ser seletivamente virtuoso numa política orçamental de défice zero. É por isso que a surpresa de Costa surpreende. Porque, se se revê na proclamação de que “somos todos Centeno”, não lhe pode causar surpresa que quem se mantém precário e perde horizontes de mudança não cale a sua revolta.

Mas a intensidade da indignação, tendo esta razão geral, tem razões próprias que a acrescentam. Não é só a persistência da precariedade no desempenho dos profissionais da cultura que revolta, pelo contraste com as perspetivas abertas em 2015. É a persistência de uma visão política da cultura como um domínio em que cada euro colocado pelo Estado é uma benesse, em que 0,2% do orçamento são tidos como representando um grande esforço do Governo e em que a imagem que é passada é que tudo não passa de zanga de quem perdeu subsídio.

Podem – e devem – ser corrigidos os absurdos técnicos do modelo de financiamento. Eles foram atempadamente apontados pelos artistas e criadores e o Governo não os ouviu. Mas, muito mais que isso, é imperioso que quem governa assuma com clareza e sentido pedagógico que cada euro colocado na cultura é um investimento do país em si mesmo e não um favor a quem alegadamente não sabe gerar receitas. Nenhum Governo faz um favor ao conceder apoios à criação cultural e às artes. Apenas se limita, com isso, a fazer o que tem que fazer para que o direito de todas as pessoas à cultura seja uma realidade. Num país com um lastro secular de atavismo, o atual tamanho do orçamento para a cultura é um insulto para a democracia. Por isso, há uma só forma de prevenir que António Costa se volte a surpreender com a revolta das gentes das artes: ser ele mesmo o protagonista de um entendimento político diferente do lugar da cultura, a começar a materializar-se já no próximo orçamento, com a cativação de 1% para a cultura.

Publicado na revista “Visão” - 12 de abril de 2018