[As pessoas desta companhia] Preferiram estar a trabalhar nesta programação, que não fica nada a dever às companhias profissionais subsidiadas, em vez de estarem ao computador a tratar do processo.”
“Vim cá a Leiria porque, por incrível que pareça, não me pediram dinheiro. Como é possível? Ainda por cima na área do teatro! Foi algo que me tocou bastante. É uma lição de como um grupo de teatro profissional, com três atores, que se dedica de corpo e alma ao seu trabalho, vive sem pedir dinheiro, não incomoda a administração central".
[Em primeiro lugar, desculpem o incómodo.]
As duas frases que acabei de ler foram ditas pela Directora Regional da Cultura do Centro, numa cerimónia pública realizada em Leiria no dia 2 de Março [https://www.dn.pt/lusa/interior/diretora-da-cultura-do-centro-prefere-candidatura-conjunta-a-capital-europeia-2027-9158235.html ].
Quem trabalha profissionalmente em cultura habituou-se há muito a relativizar o papel das Direcções Regionais de Cultura e a desvalorizar a importância das declarações proferidas pelos seus responsáveis ou pelas suas responsáveis.
Se hoje recordo estas declarações não é, portanto, para insistir no que mais de 1.300 pessoas (entre as quais me incluo) afirmaram a este respeito, numa petição pública que ainda está disponível [http://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=PT88613]. Não é, sequer, para lembrar que o Ministro da Cultura afirmou que não valia a pena substituir a actual responsável pela DRCC porque – cito – está “quase no final do seu mandato” [https://www.publico.pt/2018/03/14/culturaipsilon/noticia/ministro-reitera-confianca-na-directora-regional-de-cultura-do-centro-apos-afirmacoes-polemicas-1806617].
Recordo estas declarações (e acho pertinente o título-pergunta deste debate [https://www.facebook.com/events/227900827760498/]) porque sinto que a ideia de que o financiamento público das artes é ou um incómodo ou um favor que os responsáveis políticos fazem aos artistas ao sabor das suas vontades está muito mais disseminada do que gostamos de acreditar.
Este sentimento não é de agora nem é motivado pelo que aconteceu nos últimos concursos de apoio às artes, mas é verdade que o modo como o actual Governo conduziu este processo nos dá abundantes e preocupantes exemplos desta visão distorcida do lugar das artes no conjunto das políticas públicas.
Este debate surge em complemento a um dossier publicado pela edição de Maio do jornal Le Monde Diplomatique – edição portuguesa [https://pt.mondediplo.com/spip.php?article1230]. No texto que escrevi para esse dossier cito alguns números e falo um pouco do que se passou com o financiamento público das artes cénicas e das artes visuais em Portugal nos últimos dez anos. Poupo-vos agora a esses números, mas há duas ou três referências que me parecem importantes para enquadrar a discussão:
1. vivemos num país onde o orçamento para a cultura continua a representar pouco mais do que 0,1% do Orçamento Geral do Estado;
2. os apoios “às artes” - às artes cénicas e às artes visuais – representam apenas cerca de 9% do total do orçamento da cultura (que obviamente tem de dar resposta a muitas outras coisas, igualmente fundamentais para a nossa vida colectiva);
Quando decidimos realizar este debate (em meados de Março) não sabíamos ainda que ia haver a contestação que houve, mas sabíamos:
1) Que os financiamentos públicos às artes sofreram cortes devastadores a partir de 2010;
2) Que em consequência desses cortes muitas estruturas de criação e programação foram obrigadas a reduzir actividade, a despedir pessoas, a tornar ainda mais precárias as condições dos seus trabalhadores, a endividar-se para conseguir sobreviver e continuar a trabalhar;
3) Que algumas companhias – incluindo a Cornucópia – fecharam mesmo;
4) Que muitos jovens recém-formados não puderam sequer iniciar o seu percurso profissional; que muitas e muitos profissionais foram obrigados a mudar de profissão ou a emigrar;
5) Que muitos teatros e cine-teatros do país, ignorados pelo Estado Central, têm enormes dificuldades em assegurar uma programação regular, diversificada e com qualidade;
6) Que o actual Governo, apesar de criticar no seu programa a “sub-orçamentação dramática” [https://www.portugal.gov.pt/ficheiros-geral/programa-do-governo-pdf.aspx] a que a cultura esteve sujeita nos anos anteriores, não alterou de forma significativa a dotação orçamental para esta área.
Quando decidimos realizar este debate sabíamos também, em relação a estes concursos, cujos resultados estavam a começar a sair, que:
1. apresentavam um novo regulamento, imposto pelo Governo, contra muitos dos contributos que representantes do sector aceitaram dar durante um período de discussão pública apenas formal;
2. que este novo regulamento não só não resolvia nenhum dos problemas do regulamento anterior como acrescentava problemas novos;
3. que estes concursos tinham um orçamento inicial completamente desadequado em relação às necessidades do país, demonstrando a insensibilidade do Governo face ao estado em que se encontrava o sector.
Creio que só por isso este debate já se justificaria. Mas a forma como o Governo conduziu o processo trouxe ainda, a meu ver, motivos acrescidos de preocupação. Secretário de Estado, Ministro da Cultura e o próprio Primeiro-Ministro multiplicaram-se em declarações que apoucam os agentes culturais e constituem até um retrocesso na forma de se encarar e discutir o lugar do financiamento público das artes. Três exemplos:
1. Secretário de Estado e Ministro defendem durante meses a impossibilidade de reforçar o orçamento. Face à pressão das ruas, o Primeiro-Ministro autoriza quatro reforços orçamentais no espaço de dois meses. Afinal “havia pão” e quem “ralhou” tinha razão. Ninguém tirou consequências deste processo, ninguém assumiu responsabilidades. Pior: na opinião pública, o ónus fica do lado dos “artistas”, que “berram” muito e que mais uma vez lá conseguiram “mais uns trocos”;
2. Perante situações absurdas de estruturas muito bem pontuadas pelo júri e que passam a receber ainda menos do que recebiam nos últimos anos, o Ministro da Cultura afirmou: “É evidente que para ajudarmos bem, não podemos dar a todos as fatias que pretendem do bolo. (...) todos nós temos de nos acomodar porque nunca temos tudo aquilo o que pedimos” [https://www.jornaldocentro.pt/online/cultura/ministro-da-cultura-diz-que-estruturas-nao-podem-receber-todos-os-apoios-pedidos/]. Para além da infantilidade da metáfora e dos verbos escolhidos, importa realçar que isto foi dito na cerimónia em que se anunciava a disponibilidade do Ministério da Cultura para “cooperar” com um projecto turístico na quinta de família do empresário Miguel Pais do Amaral, em Mangualde. Cada um tem os verbos que merece.
3. Aparecendo como o salvador que resolve o problema, António Costa desautorizou Ministro e Secretário de Estado anunciando reforços sucessivos, à medida que a contestação subia de tom. O terceiro foi anunciado em carta aberta [https://observador.pt/2018/04/05/costa-em-carta-aberta-elogios-ao-ministro-e-reforco-de-financiamento-as-artes-em-22-milhoes/], divulgada às 7 da manhã da véspera do dia para o qual estavam anunciadas manifestações nas principais cidades do país. Acentuando a lógica populista dos “milhões” (falando sempre nos valores de 4 anos, para garantir impacto mediático), consegue ainda enviar recados, dizendo que não pode haver “apoios vitalícios”, como se alguma vez isso tivesse estado em cima da mesa, como se alguém alguma vez tivesse defendido tal coisa.
Respondendo pela enésima vez à pergunta que jornalistas – não por acaso – nos fazem nas últimas semanas: “Não, o problema não está resolvido. Não, os reforços do senhor Primeiro-Ministro (é assim que lhes chamam) não nos calaram”.
Se de facto o Governo quer levar a sério o que escreveu no seu próprio programa – a cultura é “um pilar essencial da Democracia, da identidade nacional, da inovação e do desenvolvimento sustentado” – tem de arrepiar caminho e dar-se ao incómodo:
- de aumentar de forma séria o orçamento para a Cultura, encarando-a realmente como uma área essencial entre o conjunto das suas políticas públicas;
- de se deixar de tiradas demagógicas e populistas, que apenas reforçam a ideia e a lógica da subsidio-dependência;
- de encarar os agentes culturais como parceiros empenhados na satisfação do interesse público, promovendo uma verdadeira discussão pública em relação aos mecanismos de financiamento e respectivos regulamentos.
Adenda: A minha intervenção terminaria aqui. Mas entretanto saiu esta tarde uma notícia, segundo a qual o Ministério da Cultura terá informado a agência Lusa de que na próxima semana apresentaria na Assembleia da República a sua “proposta de alteração do novo modelo de apoio às artes”. A ser verdade, é preocupante: o que o Governo prometeu ao país foi uma discussão sobre o que correu mal neste processo. Não tendo sido dados quaisquer passos neste sentido, não se entende que proposta possa ser esta nem qual o interesse do Ministério da Cultura em avançar unilateralmente com novas medidas, antes sequer de voltar a chamar o sector para se pronunciar.
* Intervenção apresentada no debate “A cultura é um incómodo? Artes, política e serviço público”, com Cláudia Galhós, João Maria André, Pedro Rodrigues, Tânia Guerreiro e moderação de João Rodrigues. Coimbra, Teatro da Cerca de São Bernardo, 29 de Maio de 2018. Org. Le Monde Diplomatique – edição portuguesa.