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Reconhecimento e redistribuição

Na tradição política norte-americana, dizer-se de alguém que é liberal é o equivalente a, na tradição política europeia, dizer-se desse alguém que é de esquerda. É por isso que essa qualificação de liberal, quando proferida por conservadores ou trumpistas, é uma acusação, uma alusão pejorativa. Nesse sentido norte-americano, os liberais têm uma visão da sociedade que bebe em duas fontes: o movimento pelos direitos cívicos e o movimento operário. Do primeiro herdou a defesa dos direitos pessoais e de políticas públicas proativas para essa defesa; do segundo, recebeu a inspiração socialista na conceção do papel do Estado na regulação da economia e nas políticas sociais. Bernie Sanders será hoje o político norte-americano que melhor encarna essa cultura política de complementaridade entre os direitos pessoais e os serviços públicos, entre o reconhecimento e a redistribuição. Não é certamente por acaso que os seus adversários o acusam de ser um perigoso liberal, ao mesmo tempo que ele se diz socialista.

Entre nós, o pensamento convencional, à esquerda e à direita, não consegue ver nessa articulação outra coisa senão uma insanável contradição. Por um lado, esse modo de pensar é sufragado pelos que, em nome do primado do social, acusam a defesa da autonomia individual de ser uma cedência ao individualismo que encerra cada um no seu isolamento. Por outro, é um pensamento sustentado pelos que, em nome do liberalismo económico, olham para o Estado como um monstro guloso que tudo sorve e, com base nesse entendimento, postergam os serviços públicos e tudo quanto não seja privado.

Esse pensamento convencional dá-se mal com a noção de que há um ideal de emancipação que une o liberalismo cívico e o socialismo. E é essa centralidade da emancipação que anima o pensamento alternativo ao convencional. Para este pensamento alternativo, reconhecimento e redistribuição completam-se, não se excluem. Nos combates por uma ampla esfera de autonomia pessoal, pelos direitos de identidade que se opõem a formas de opressão diversas – de género, de raça, de orientação sexual, etc. – tanto quanto na redistribuição do poder e do rendimento, é a mesma libertação das amarras que impedem a plena realização e expressão social de cada um, a mesma aspiração à emancipação, que está presente.

O recente debate sobre a despenalização da morte assistida é um bom exemplo do enfrentamento entre aquele pensamento convencional e este pensamento alternativo. Descontados os argumentos do medo e tudo aquilo que foi ganga argumentativa do momento, o que no essencial opôs adeptos da penalização e adeptos da despenalização foi o lugar por cada um deles dado aos princípios da liberdade pessoal e da autonomia da vontade. Houve uma esquerda que se bateu por eles e uma esquerda que deles manifestou desconfiança. Para a primeira, as batalhas pela ampliação da autonomia da vontade pessoal são batalhas pela emancipação e nelas se joga uma parte importante da transformação do sistema de poder instalado. Por isso, essa esquerda teve uma posição de empenhamento em favor da despenalização, sem medo de se unir a quem, à direita, teve nesta matéria uma abertura liberal. Para a última, centrar a autonomia na esfera de cada pessoa é uma cedência inaceitável à ideologia liberal e um endeusamento equivocado do individuo em detrimento do coletivo. Por isso, se manifestou contra a despenalização, sem medo de aparecer unida argumentativamente à direita conservadora.

As circunstâncias singulares do nosso tempo em termos de exploração, discriminação e autoritarismos vários mostram como a combinação entre lutas pelo reconhecimento e lutas pela redistribuição é uma exigência fundamental para a transformação dessas marcas fundas da sociedade. Essa combinação convoca uma cultura política de articulação sábia entre a emancipação coletiva e a emancipação individual. Chamem-lhe liberal à americana. Se isso quiser dizer complemento entre a solidariedade de classe, as solidariedades identitárias e o fim das tutelas sobre cada pessoa, eu, por mim, não me importo.

 

Publicado na revista Visão - de fevereiro de 2020