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Patentear o Sol

Estamos todos no mesmo barco? Sim, no sentido em que a ameaça da pandemia se abate sobre todas as pessoas e sobre todos os países e respetivos sistemas de saúde. Não, no sentido em que as possibilidades reais de os diferentes países responderem à pandemia são muito desiguais. Neste barco há quem vá em camarotes de luxo e quem vá no porão.

De mãos dadas com o novo normal, há esse velho normal da desigualdade. E é nesse velho normal que se está a disputar o que vai ser a vacina contra a Covid-19. Das vacinas em desenvolvimento confirmado, 72% estão a sê-lo pelo setor privado que é dominado, à escala mundial, por quatro grandes produtoras: a GSK britânica, a Sanofli francesa e a Merck e a Pfizer norte-americanas. Estas empresas operam num mercado que, para gerar para elas os lucros que as creditam como gigantes da chamada Big Pharma, assenta no monopólio garantido pela exploração de patentes. A esses monopólios garantidos pelas patentes e outros direitos de propriedade industrial vêm invariavelmente associados preços tantas vezes proibitivos cobrados às pessoas, as quais, com os seus impostos, financiaram os trabalhos de investigação preliminares que suportaram os processos de desenvolvimento final das vacinas.

É este o barco em que estamos. Um barco de monopólios industriais e de nacionalismos em disputa. Pode este velho normal ser disputado e combatido com sucesso? Pode, pois. Nos anos 50, quando a poliomielite atingia dezenas de milhar de crianças por ano, Jonas Salk, cujo laboratório na Universidade de Pittsburgh havia beneficiado de financiamento de uma fundação privada, mas também de milhões de americanos, decidiu não patentear a vacina que inventou. Conseguida graças à ajuda de tantos, a vacina tinha que ser aberta a todos. A sua posição foi clara: “não há patente; poder-se-ia patentear o Sol?”

O altruísmo de Salk é o avesso do velho normal do barco em que estamos. Ele foi inspirador para a quebra das patentes no combate dos mais pobres pelo acesso aos retrovirais contra a sida, na década de 90. E pode ser inspirador para os Estados imporem licenças compulsórias sobre vacinas e medicamentos contra a Covid-19.

Assumir a vacina como um bem comum da humanidade é muito mais que um princípio moral, é um compromisso de confronto político e ideológico intenso contra os monopólios das farmacêuticas e pelo primado do interesse de todos. Na criação de condições políticas e económicas para que a vacina seja um bem comum da humanidade vai muito da definição do que será ou não será o mundo da pós-pandemia.

Publicado no "Diário As Beiras” - 23 de maio de 2020