Vale a pena ler Jonathan Crary. Em “24/7: o capitalismo tardio e os fins do sono” (Antígona, 2018), Crary, professor de Teoria e Arte Moderna na Universidade de Columbia, discute o embate entre o capitalismo e o sono. Bizarria, excentricidade? Talvez não. Talvez mesmo um dos tópicos mais clássicos e fortes da crítica do capitalismo como modo de organização social.
O capitalismo sempre estigmatizou o descanso e o ócio como “improdutivos”. Nas grandes lutas dos trabalhadores contra os ditames do capital ao longo do século XX, o combate pela fixação de uma jornada de trabalho e pelo direito a férias e gozo de dias feriados foi definidor de campos opostos. E continua a ser. Basta lembrar que, em Portugal, há meia dúzia de anos, a Troika e o governo das direitas tomou o aumento da jornada de trabalho e a eliminação de feriados como suas prioridades. Sempre em nome do credo fundamental do capitalismo que é o de que a produtividade vem primeiro, a não produção vem depois.
John Crary vem mostrar uma coisa simples: no capitalismo tardio que é o nosso, a engrenagem imparável é mesmo imparável. A exaustão é a lei. E, por isso, cada vez mais o sono se afigura como barreira ao funcionamento ótimo do capitalismo. O sono é tido como o tempo improdutivo e isso é inconcebível na lógica da máquina imparável. O sono é um reduto da nossa reserva pessoal e isso é desqualificado pela máquina massificadora que é o capitalismo.
Daí às experiências em curso, promovidas pelo aparelho militar norte-americano, tendentes ao prolongamento máximo da privação do sono – algo que permitirá programar o desempenho dos soldados-máquinas em termos totalmente distintos dos atuais – e à transferência dos sucessos dessas experiências para o mundo geral da produção vai um passo. Ele está aí e vem antecipado pela formatação ideológica das nossas consciências com a apologia dos workolismo (sob formas diferentes, desde o elogio da “city that never sleeps” até ao elogio dos dominadores da informação global em tempo real).
A desumanização do tempo é uma marca do produtivismo em que vivemos. Sem nos darmos conta, estamos a entrar na cultura em que sonambulismo e exaustão são virtudes e em que desligar é um defeito. Por isso, a luta pela humanização e pela desglobalização do tempo, património de sempre da esquerda, tem hoje mais sentido que nunca enquanto luta anticapitalista. Leiam Jonathan Crary. De preferência durante o vosso tempo de descanso.
Publicado no "Diário “As Beiras” - 1 de setembro de 2018