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O réquiem da Segurança Social

Em Portugal não haverá debate sério sobre as funções sociais do Estado. Se esse debate se fizesse, começaria pela identificação das fragilidades sociais do País, seguiria pela identificação das correspondentes responsabilidades do Estado e concluiria pela identificação dos recursos necessários para o efeito e das reformas requeridas para os obter, com uma séria reforma fiscal à cabeça. O que a troika e o Governo estão a instalar é o oposto. Impõem políticas recessivas, encurtam o rendimento disponível e concluem que, havendo menos dinheiro, tem de haver menos funções sociais. Tudo se resume a criar um clima que naturalize cortes adicionais de quatro mil milhões de euros, no próximo ano, no suporte das responsabilidades sociais do Estado. O resto é embrulho para adornar.

É nesta criação de clima que se inscreve o modo ardiloso como Passos Coelho vem tratando a questão das pensões. Começa por, em tom de denúncia, avisar-nos de que "há pessoas que têm reformas pagas por aqueles que estão a trabalhar" (esse escândalo que é termos um sistema redistributivo!), avança depois que não é justo que haja pensões muito acima da média e remata com a sentença de que o que se impõe é uma reforma estrutural do sistema de pensões porque o que temos hoje é insustentável. A história contada do fim para o princípio é sempre mais clara, é ou não?

A verdade é que esta é apenas mais uma história mal contada. De modo grosseiro, Passos Coelho mistura pensões realmente escandalosas praticadas em regimes específicos (Banco de Portugal, Caixa Geral de Depósitos, etc.) - de que têm sido beneficiários alguns dos seus mais notáveis apaniguados políticos, como Mira Amaral - com o sistema contributivo da Segurança Social. O resto do jogo é o do costume: pôr trabalhadores do sector privado contra os funcionários públicos, pôr as gerações mais novas contra as gerações mais velhas e anunciar supostas inevitabilidades. Tudo para legitimar o réquiem sobre a segurança social pública.

Um debate minimamente sério nunca poria em causa várias coisas. Primeira: carreira contributiva é isso mesmo - tem direito a pensão mais alta quem descontou mais e durante mais tempo (sendo que, em média, os trabalhadores da administração pública descontam mais tempo e sobre salários mais elevados). Segunda: se alguém tem responsabilidade pelos riscos de insustentabilidade da Segurança Social, é este Governo e a sua política de aumento exponencial do desemprego. Menos gente a descontar e mais gente a receber prestações sociais tem resultados óbvios: ao saldo positivo de 438 milhões de euros no ano passado sucede um saldo negativo de 694 milhões este ano. Esta caminhada tresloucada para o abismo é realmente insustentável. Terceira e fundamental: escândalo maior do que algumas pensões elevadas é a miséria da grande maioria das pensões; e só acredita que limitando as mais altas o Governo subirá as mais baixas quem quer.

Pondo gerações contra gerações, trabalhadores contra trabalhadores, o que o Governo pretende atingir é simples: criar espaço para cortar a sério nas reformas da classe média, esquecendo o que é verdadeiramente milionário. E, pelo caminho, destruir o pilar da Segurança Social da nossa democracia e substitui-lo por um modelo totalmente diferente em que a capitalização privada através do jogo do mercado financeiro tome o lugar da matriz redistributiva e em que todos sejamos penalizados por um adiamento sucessivo da idade da reforma.

No universo do "ímpeto reformista" do Governo e da troika, isto é uma verdadeira "reforma estrutural". Se puderem contar com o PS para debater o embrulho não debatendo o recheio, tanto melhor. Senão paciência, vai a eito.

Diário de Notícias, 21 de Dezembro de 2012