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Militâncias jurisprudenciais

O desembargador Manuel Soares entendeu pôr em causa, em artigo de jornal de grande divulgação, a isenção da conselheira Clara Sottomayor. Não foi uma mera crítica ao estilo, foi um questionamento ao essencial da competência para o exercício da função de julgar: a objetividade e a isenção da conselheira. Que vício gravíssimo invoca o desembargador Manuel Soares para o labéu acusatório contra a sua colega? Ei-lo: “de acordo com os jornais, a juíza que renunciou ao Tribunal Constitucional assume-se como ativista de causas feministas.” Vício grave aliás agravado: “chegou a declarar (sic) que ‘infelizmente, em Portugal, não existe uma teoria feminista do direito(link is external)’”.

A tese de que ser feminista rouba isenção é tributária da defesa de que a seriedade do juiz exige uma equidistância relativamente aos interesses em confronto na sociedade. Para quem assim pensa, ser feminista, como ser anti-racista, conduz o juiz a “distorcer o sentido da lei para a acomodar às suas próprias convicções”, como escreve o desembargador Manuel Soares. Pouco importa se ser feminista é defender as consequências práticas do princípio constitucional da igualdade entre mulheres e homens e se ser anti-racista é defender as consequências práticas do primado dos direitos humanos para todas as pessoas em todas as circunstâncias.

O estreitamento positivista é um vício ético disfarçado de rigor. Porque ele desliga, no juiz, a aplicação da lei da luta pelo que é justo. Como desliga, no médico, a tecnicidade do diagnóstico e o rigor da terapêutica da luta por mudanças nos determinantes sociais ou ambientais da saúde. É uma visão que amputa o juiz do seu compromisso fundo com o justo a que a lei nem sempre dá corpo de forma suficientemente robusta.

O que é digno de crítica não é que um juiz seja feminista ou anti-racista. O que é aberrante – e fere a consciência ética e jurídica da comunidade – é que um juiz aja perante um caso de violência racista envolvendo-se num véu de ignorância sobre o racismo que gera violência. O que é aberrante – e fere a consciência ética e jurídica da comunidade – é que um juiz julgue um caso de violação e deixe que a tecnicidade processual o impeça de colocar no centro da sua decisão o que é verdadeiramente essencial: violação é violação.

Há no fundo da crítica do desembargador Manuel Soares à conselheira Clara Sottomayor um preconceito: que os empenhamentos públicos pela igualdade e contra a discriminação são militâncias incompatíveis com a isenção de julgar, enquanto que o legalismo cego aos valores do direito não é uma militância conservadora. É. Só que, quando isso é posto em público, logo os defensores da corporação bradam contra a violação da independência dos juízes.

Publicado no "Diário As Beiras"  -  5 de agosto de 2019.