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A ilusão da ilusão

Dois anos volvidos sobre o início de um caminho de recuperação dos rendimentos e de direitos básicos das classes trabalhadoras, os adeptos do “já chega” agitam-se. E, porque os adeptos do “já chega” não se movem por razões ideológicas – fixações ideológicas só têm os adeptos do “não chega, não” – o argumento deles é o do bom senso e do equilíbrio. 

Nada de extremismos como querer mudar as leis do trabalho que a troika e o governo das direitas impuseram. Nada de radicalismos estatizantes como querer que o Serviço Nacional de Saúde deixe de ser refém orçamental das parcerias público-privado no setor. E, sobretudo, nada de sonhar com um país de mais direitos para os de baixo e de menos rendas garantidas para os de cima. É ilusão, dizem os do “já chega”. É mesmo uma dupla ilusão, diz o Presidente da República: primeira, “achar que é possível voltar ao ponto em que nos encontrávamos antes da crise – isso não há!” e, segunda, “achar que se pode olhar para os tempos pós-crise da mesma forma que se olhava antes [para os problemas], como se não tivesse havido crise.”

O discurso da ilusão é ilusionista. Porque só mostra o que quer mostrar e oculta o que quer manter como mistério. O discurso da ilusão é o discurso do “já chega” mas já chega só para alguns, os de baixo. Porque ele é também o discurso do “nunca é demais” para os de cima. Quando nos dizem “não é possível dar tudo a todos”, saibamos exatamente o que nos querem dizer: “tudo a todos não, tudo só para alguns: os do costume”. Por isso ficam tão agitados quando os de baixo têm algo mais, pouquinho mais – é que se lhe tomam o gosto ainda podem querer ter aquilo que não podem ter porque senão os de cima ficam com menos, não querem lá ver?!

O discurso da ilusão é ilusionista porque nos mostra a crise como nos quer convencer que ela foi: o resultado de um suposto excesso de direitos dos de baixo. Mas, ilusionista que é, oculta o que foi a verdadeira origem da crise: um sistema financeiro privado com um endividamento em espiral e governado por gangues que o sangraram a seu bel-prazer. Sim, não é possível voltar a antes da crise – mas isso é recado a dar aos bancos e a quem os gere.

Nem o medo nem a acomodação nos podem fazer render aos adeptos do “já chega”. Eles vendem-nos uma dupla ilusão: primeira, a de que foram os debaixo que tiveram culpa do desgoverno da economia e que, por ser assim, não se lhes pode dar mais; e, segunda, a de que o “já chega” será uma espécie de ponto morto, em que os direitos não avançam mas também não recuam – recuam sim, porque a lógica do já chega é sempre a de mínimos mais mínimos. É por isso que não chega. Não chega, não.

Publicado no "Diário As Beiras” - 25 de novembro de 2017