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A forma e a coisa

A forma muda para que o conteúdo se mantenha. E esse conteúdo é uma austeridade sem fim à vista, um continuado abate de serviços públicos essenciais e de direitos de dignidade social elementar.

Nem era preciso que Mario Draghi tivesse desmentido Paulo Portas a este respeito, como o fez sem pestanejar esta semana. O que Draghi disse - durante o "período transitório, haverá um programa adaptado à situação durante esse período de tempo. Teremos de ver que tipo de forma é que esse programa terá" - não deixa margem para dúvidas: a coisa está decidida, só falta decidir a forma. O nome da coisa - programa cautelar, seguro, linha de crédito do Mecanismo de Estabilidade Europeu, segundo resgate - é o menos. É a substância que conta. E essa é clara há muito.

Bem pode Paulo Portas encenar o resgate da soberania ofendida apregoando que em junho nos veremos livres de troika. Que está quase, que só falta uns meses, que agora é só aguentar estoicamente mais umas semanas porque o pesadelo está no fim. Não está. Passado junho, não passará "a obrigação de cumprir os nossos compromissos internacionais" nem passará o "estado de exceção". Não passarão as "condicionalidades" (leia-se as imposições de metas de esfacelamento da democracia social), nem passarão as "avaliações" de perfil humilhantemente colonial sobre o desempenho do País. Ouviremos então o mesmo Paulo Portas que nos encoraja agora a mais uns meses de estoicismo para sermos de novo independentes a avisar-nos que "temos de ser responsáveis" e que "os sacrifícios imensos que o povo português fez não podem ser em vão" e que "temos de manter o rumo" (onde é que eu já ouvi isto?). Traduzido para português: a austeridade de agora impõe austeridade depois, a humilhação colonial de agora impõe mais humilhação colonial depois. E sempre. Porque a austeridade não é um instrumento mas um fim: empobrecer quem tem menos para transferir essa diferença para quem sempre teve mais.

Foi importante, porque clarificador, que Draghi tivesse dito o que disse antes de qualquer decisão do Tribunal Constitucional sobre o Orçamento para 2014. Porque assim fica cristalino aos olhos de todos que o álibi preparado pelo Governo para justificar aos olhos dos cidadãos a impossibilidade de um efetivo resgate da independência não é senão uma encenação que pretende legitimar mais golpes na democracia social e na dignidade das pessoas e a desresponsabilização do Governo pela perpetuação e o afundamento da crise económica do País no próximo ano.

O que se impõe não é pois aguentar, mas sim interromper a trajetória de endividamento crescente e de debilitamento da capacidade produtiva nacional. Três anos de austeridade trouxeram-nos a este casamento perverso entre uma crescente incapacidade de o País fazer face à sua fragilidade e ao seu atraso e uma indisponibilidade de instrumentos de política económica para o tentar. Tudo agravado por uma Europa que em vez de usar o poder que tem para ajudar a resolver estes problemas o faz apenas para impor nas suas periferias internas um modelo de sociedade que não foi a votos e que a democracia derrotaria inexoravelmente. Para um país assim, o regresso aos mercados não é um projeto, é uma ilusão. O Governo obriga o País a morrer à sede mobilizando-o para caminhar em direção àquilo que sabe ser uma miragem mas que diz ser um oásis. Quando lá chegarmos só haverá mais areia e mais calor sufocante. O caminho do País tem que ser sair deste caminho.

Diário de Notícias, 20 de dezembro de 2013