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A eurogreve e a outra Europa

O facto de a greve geral da passada quarta-feira ter ocorrido em simultâneo em Espanha, França, Itália, Chipre, Grécia e Portugal espelha a subida de patamar da conflitualidade social provocada pelos exercícios de engenharia social em que se transformou a governação na Zona Euro. À estratégia de confinamento nacional das crises e das políticas oficiais de resposta - simbolizada na terminologia "crise das dívidas soberanas" -, o movimento sindical e os movimentos sociais respondem com a reposição da natureza incindivelmente europeia da política da crise e das alternativas a ela. Articular a contestação em escala europeia contra a fragmentação nacional das políticas de empobrecimento - eis o valor político principal desta eurogreve.

Este "mais Europa" horizontal ambicionado pelas vítimas das austeridades nacionais está cada vez mais a contrapor-se ao "mais Europa" impositivo querido pela chanceler Merkel. E o confronto entre essas duas Europas é decisivo para a democracia. Tradicionalmente, "mais Europa" tem sido uma outra forma de dizer federação europeia, e os seus porta-vozes foram, durante décadas, do campo progressista. Mas o federalismo não é uma abstração. Ele é o que quem o propõe e quem o apoia quer que ele seja. Sucede que, na voragem da reconfiguração da relação de forças na União Europeia desde os anos noventa, o federalismo foi capturado pelas correntes liberais e passou a ser o seu discurso para a Europa. A federação é hoje o horizonte ambicionado por quem manda na União. E, por isso, não vem associada à defesa da autonomia e igualdade dos Estados, mas, sim, à sua anulação. O federalismo europeu dos liberais é centralista. Muito menos vem associado à defesa da democracia e da participação cidadã, porque o federalismo em construção vê-as como obstáculos à concretização do seu programa de perda de direitos e de reforço do cânone da austeridade. O federalismo europeu dos liberais é antidemocrático.

Angela Merkel é o rosto maior deste federalismo em construção. A imposição do Pacto Orçamental aos demais Estados da União - e da sua regra incumprível de um défice estrutural de 0,5% do PIB - foi justificada com o exemplo dos Estados Unidos. Esqueceram-se os adeptos do federalismo merkeliano de um pequeno detalhe: nos Estados Unidos, a federação apoia os estados com dificuldades e a Reserva Federal apoia esse apoio, enquanto na Europa a Comissão Europeia pune os Estados mais fragilizados e o Banco Central Europeu fomenta a especulação do sistema financeiro contra os Estados membros.

Mas Merkel agora vai mais longe ainda: o reforço da integração passa, segundo ela, pela atribuição à Comissão Europeia de poderes para fiscalizar e vetar os orçamentos nacionais. Esta deriva centralista - nunca seria concebível nos Estados Unidos que Washington tivesse poder para aprovar os orçamentos dos Estados federados! - mostra o que está verdadeiramente em causa no federalismo em construção: a submissão das democracias nacionais a uma tecnocracia sem rosto mas com agenda clara.

Em 1938, Roosevelt disse aos americanos: "Não esqueçamos nunca que o governo somos nós e não um poder estranho sobre nós. Os sujeitos da nossa democracia não são o Presidente, os senadores e os membros do Congresso, mas sim os eleitores deste país." São os eleitores deste país, os de Espanha, da França, de Itália, de Chipre e de Malta que estão agora a dizer nas ruas que a escolha a que a troika nos está a conduzir é cada vez mais clara: ou democracia ou ditadura. Sob a forma de federação ou sob outra forma qualquer.

Diário de Notícias, 16 de Novembro de 2012