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Escolhas corajosas

Dias espessos, estes, em que a volatilidade se mistura com o pavor. Tudo o que vaticinemos agora estará infirmado daqui a pouco, todos os programas perderam estabilidade, a pilotagem dos números mostra-se sem sentido útil porque eles são totalmente incertos. E a incerteza absoluta casa-se com o medo absoluto. Há um fantasma de morte que tomou conta de todo o espaço público e nada mais parece ter lugar.

Este é o tempo de toda a determinação e de todo o rigor. Diante do alastrar exponencial do vírus, não faz sentido discutir a emergência e a necessidade de se tomarem decisões de exceção. O que faz sentido é fazer escolhas corajosas para que a exceção não seja sinónimo de seleção social. Não faz sentido desautorizar o medo, desqualificá-lo com arrogância. O que faz sentido é reconhecer o medo e a sua razão de ser e ir a essa raiz com toda a eficácia e com toda a competência.

No imediato, isso significa duas coisas. A primeira é dar prioridade à capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde. Termos um Serviço Nacional de Saúde qualificado e democrático foi, na fase de contenção, um recurso de valia inestimável e talvez nunca como agora o país se tenha apercebido dessa valia do SNS como instrumento de defesa da nossa segurança coletiva. Agora, na fase de mitigação, quando a grandeza dos números e a gravidade dos casos se acentua enormemente, é imperioso dotar o SNS de meios humanos e técnicos para que a resposta esteja à altura do desafio. E, nesta hora de emergência, em que o SNS será sujeito a uma pressão certamente excessiva, o país não compreenderá que o envolvimento da medicina privada e social na resposta se faça numa lógica de business as usual. A requisição dos privados é aceitável, e até exigível, num momento assim.

A segunda aposta é a da afetação do excedente orçamental com critérios de eficácia, mas também de justiça. Sim, contra todas as aparências, a política não acabou. Há escolhas diferenciadoras a fazer. No financiamento do SNS, desde logo. Faltam meios, faltam profissionais, falta autonomia de gestão – agora é a hora de inverter esta marcha de tantos anos. Mas escolhas também na resposta à crise social que virá. Não basta dizer “temos folga, vamos aplicá-la”. A aplicação da folga (e do que está aquém dela) não é neutra. Sim, é também agora que a opção pelos de baixo tem sentido e define campos na política.

Publicado no “Diário As Beiras” - 14 de março de 2020