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Eleições em Itália: Espreitando pelo “céu de chumbo”

O que podemos concluir?

Os italianos estão fartos dos políticos do sistema, peritos em jogos de poder, mas incapazes de resolver os grandes problemas do país: a estagnação económica, o desemprego, a precariedade, a pobreza, a corrupção, o crime organizado, a insegurança, o subdesenvolvimento crónico do Sul, entre outros. Para grande parte do eleitorado, eles são parte do problema e não da solução. O êxito da Lega e do M5S resulta do facto de terem apresentado novos protagonistas e de, mesmo de forma perversa, terem ido ao encontro das preocupações e do desejo de mudança da maioria dos cidadãos.

Tanto a Lega como o M5S ensaiaram, nestas eleições, estratégias que lhes permitiram vencer os obstáculos que limitavam as suas possibilidades de conquistar o poder. No primeiro caso, o bloqueio era territorial; no segundo, de credibilidade. Ao deixar de se apresentar como defensora do Norte contra o Sul, retirando a palavra Nord da designação do partido, e aparecer como a voz da Itália contra a UE, Salvini resolveu, de certa forma, o problema. No segundo, Beppe Grillo, comediante e blogueiro, fundador do partido, é uma figura carismática, mas ninguém o vê como possível primeiro-ministro. Ao nomear Luigi Di Maio, uma figura ainda jovem e ainda relativamente “virgem” nos meandros da política italiana, como candidato à chefia do governo, o M5S mostrou que não estava destinado a ser apenas o destinatário do voto de protesto

O M5S, formação populista que é difícil rotular de direita ou de esquerda, venceu porque, para além de ter ideias novas ao nível da regeneração do sistema político e formas de comunicação igualmente inovadoras, que lhe permitiram ir ao encontro do eleitorado mais jovem, soube, também, apresentar propostas de cariz social, que agradaram a vários setores das classes médias (como os professores) e baixas (como os operários) e aos desempregados. Soube captar, ainda, as reivindicações de maior igualdade do Sul. Por isso, o “5 estrelas” capturou uma parte muito significativa de potenciais eleitores de esquerda, descontentes com o PD e as suas políticas antipopulares, e uma grande parte do eleitorado meridional. Por outro lado, embora não seja, tradicionalmente, contra os imigrantes, nesta campanha, o M5S, captando o espírito de muitos eleitores, apareceu com um discurso muito crítico face à imigração, que lhe terá evitado a perda de votos para a Lega. Finalmente, a ideia original de apresentar o seu futuro executivo no final da campanha mostrou confiança e deu uma ideia de transparência que acabou por revelar-se compensadora.

A Lega aproveitou, de forma demagógica, o aumento da imigração e da crise dos refugiados, em grande parte fruto da cobardia da UE, que colocou a Itália na linha da frente do problema. Como sucede noutras latitudes, a extrema-direita associa a chegada dos imigrantes ao aumento da criminalidade e da insegurança, mesmo que os dados não o confirmem. Esse discurso, que explora os medos de muitos cidadãos, consegue, e aqui não foi exceção, captar eleitores menos instruídos e com receios face ao outro, ao diferente, desde operários que temem perder o emprego a comerciantes e donas de casa que temem a criminalidade. E a Lega soube transformar esta questão no principal tema da campanha, especialmente depois do incidente de Macerata, sem que as forças da esquerda e do centro tenham conseguido contrariar essa estratégia. Por outro lado, a escolha para líder de Matteo Salvini, um eurodeputado que não integrara os governos de Berlusconi e, por isso, não se encontrava tão desgastado como outros dirigentes, acabou por se revelar uma mais-valia. Falou claro e disse abertamente ao que vinha, algo que lhe permitiu captar votos para além do eleitorado tradicional da extrema-direita.

À direita, a ultrapassagem da Lega à FI é o corolário lógico do que referimos acima. Mostra, claramente, que Berlusconi já está “fora do prazo de validade” e pouco ou nada tinha a oferecer aos italianos, até porque nem sequer podia ser primeiro-ministro, pois, por ter sido condenado por fraude fiscal, está inibido de exercer cargos públicos até 2019, A campanha que realizou foi baça e pouco coerente. A jogada desesperada de última hora, de apresentar o atual presidente do Parlamento Europeu, Antonio Tajani, como candidato a primeiro-ministro, revelou-se contraproducente, pois, para mutos, implicaria um acordo de “bloco central” com o PD, algo que a maior parte do eleitorado da direita não desejava. Não foram os seus problemas judiciais que o derrotaram, mas sim o facto de ser uma figura gasta e associada aos jogos de poder de que a maioria dos italianos está farta.

O PD sofreu uma grande derrota, fruto de uma legislatura em que, frutos dos jogos de poder de Renzi, teve três primeiros-ministros, um dos quais ele próprio. Ao apresentar-se de novo à chefia do governo, após se ter demitido na sequência da derrota das suas propostas de reforma constitucional, no referendo de 2016, Renzi mostrou uma ambição de poder que desagradou a boa parte do eleitorado. É visto pela maioria como alguém que coloca os seus próprios interesses à frente dos do país. Por outro lado, a reforma regressiva das leis laborais, da autoria do seu governo, não foi esquecida pelos mais desfavorecidos, como prova a rejeição do PD entre os operários e os desempregados. É uma ironia trágica que seja entre empresários e gestores que o partido consiga maior percentagem de apoio. E é também alarmante o envelhecimento do seu eleitorado. Como tem vindo a suceder em muitos países da Europa, a conversão dos partidos social-democratas ao neoliberalismo está a contribuir para os conduzir à irrelevância política.

O euroceticismo cresceu bastante em Itália e o centro implodiu. A coligação de Monti, que somara 10,6% dos votos em 2013, acabou engolida na aliança de direita, através da lista NcI, com resultados residuais. Mas também o centro-esquerda europeísta não tem razões para sorrir: o partido +E, de Emma Bonino, defensor do federalismo europeu, não atingiu os 3% necessários para obter lugares na distribuição proporcional dos mandatos, enquanto as outras listas (Insieme e CP), juntas, somam pouco mais de 1%. A economia italiana, cujas exportações viviam muito das desvalorizações competitivas da lira, ressentiu-se muito da adesão ao euro e o país experimenta, desde então, um crescimento anémico. O apoio à UE, até aí esmagador, diminuiu rapidamente e a crise dos refugiados só contribuiu para acelerar essa tendência. Daí que mais de metade do eleitorado tenha votado em forças assumidamente eurocéticas (M5S, Lega e também os nacionalistas FdI, que, apesar da concorrência da Lega, mais que dobraram a sua votação).

A esquerda continua na “mó de baixo” e tem de repensar completamente a sua estratégia. A lista LeU resultou de um equívoco e redundou em fiasco. A ideia de juntar a esquerda aos dissidentes do PD parecia, teoricamente, garantir um alargamento do eleitorado, captando os eleitores social-democratas desiludidos. O problema é que D’Alema ou Bersani, entre outros, são políticos do sistema, com uma imagem gasta pelo seu protagonismo nos habituais jogos de poder de que o povo se fartou. Acresce, ainda, que o primeiro chefiou um governo que não se distinguiu, propriamente, pelas suas políticas de esquerda. Daí que, apesar de o seu cabeça de lista, Pietro Grasso, até aqui presidente do Senado, ser uma figura respeitada, a maioria dos eleitores de esquerda, sedenta de mudança, não viu que a LeU lhes pudesse oferecer algo de diferente. Acabaram, por isso, por ir atrás do M5S. Por outro lado, a lista da esquerda radical, Potere al Popolo! (PaP), fundada a partir de coletivos de base e de movimentos sociais com o apoio dos dois principais partidos comunistas, tem potencialidades, mas foi criada muito próximo do início da campanha e não teve tempo para se afirmar. O futuro deverá passar pela junção entre o PaP, a SI e outras forças de esquerda, com novos protagonistas, novos tipos de organização, capazes de protagonizar uma rutura, quer com as políticas neoliberais, quer com as formas tradicionais de fazer política. E há que rever, também, a estratégia comunicacional, de forma a que a mensagem possa passar, algo que, nesta campanha, esteve muito longe de acontecer. Só assim a esquerda italiana, que já foi uma das maiores da Europa, poderá sair do canto para onde se deixou remeter.

As desigualdades entre o Norte e o Sul continuam a fazer-se sentir, não apenas a nível económico e social, mas também político. Assim, enquanto a Lega domina o Norte, o M5S é senhor do Sul e das ilhas. O PD fica reduzido a uma pequena parte dos seus antigos bastiões do Centro (apertado pela primeira a norte, sul e oeste e pelo segundo a leste), a que acrescem as áreas centrais das maiores cidades do Norte (Milão e Turim) e de Roma.

Ao contrário do que seria, teoricamente, expectável, é nos círculos uninominais que ocorre a maior fragmentação partidária, Assim, as listas da NcI, I e CP só aí conseguiram obter representação parlamentar. Tal fenómeno deve-se a dois fatores: as alianças pré-eleitorais nos círculos maioritários e o facto de existirem cláusulas-barreiras no acesso à representação proporcional.

O que podemos esperar?

A formação de um governo, no quadro parlamentar saído das eleições de 4 de março, será uma tarefa hercúlea. O M5S tornou-se incontornável para uma maioria, tendo, para o efeito, dois possíveis parceiros: o PD e a Lega. Do ponto de vista matemático, poderia também aliar-se à FI, mas seria quase um suicídio aliar-se a Berlusconi. Assim, as principais hipóteses são:

Governo M5S-PD, chefiado por Di Maio. No atual contexto, parece ser o mais coerente, mas encontra fortes resistências no seio do segundo. Renzi, que, após as eleições, anunciou a sua demissão, avisou que só a concretizará após a formação de um novo executivo e opõe-se firmemente a esse cenário. Contudo, no interior do PD, há quem o defenda. Até porque o M5S suavizou a sua posição anti-UE, o que poderia facilitar a sua aproximação aos “democratas”. Curiosamente, estamos numa posição inversa à de 2013, em que era o PD a querer “puxar” o “5 estrelas” para o governo, algo que este recusou. Por outro lado,

Governo M5S-Lega. Seria o pesadelo de Bruxelas, mas não parece tão crível, já que, apesar de algumas convergências em determinados pontos, as duas formações são rivais. Poderiam, no entanto, unir-se para aprovar uma nova lei eleitoral, que reforce a componente maioritária do sistema, o que, no atual quadro político, beneficiaria ambos.

Governo “técnico”, constituído por tecnocratas sem partido, que pudesse ter apoio de M5S, de pequenos partidos, do PD e/ou da FI, quiçá com a missão de aprovar a enésima lei eleitoral até nova ida às urnas.

Mas, como disse aqui:  “Se há algo que caracterizou, desde sempre, a vida política italiana é a sua imprevisibilidade. (…), a facilidade e a velocidade com que se fazem e desfazem alianças e coligações, se criam, extinguem e fundem partidos e movimentos políticos é verdadeiramente alucinante”. Acrescento que as dissidências são vulgares na política italiana, pelo que pode haver um executivo apoiado por parte de uma ou mais forças políticas, entretanto transformadas em novos partidos. Para já, a “bola” está do lado do presidente da República, Sergio Matarella.

Publicado no Esquerda.net - 12 de março de 2018