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Cursos de maquilhagem

A Associação Sindical de Juízes, que tem toda esta informação, decidiu que o que se devia mesmo aprender no Dia Internacional da Mulher era fazer maquilhagem como deve ser.

“Certifiquem-se de que usam pó para fixar a maquilhagem, para se tiverem de trabalhar durante o dia as nódoas negras não apareçam”. Estas palavras foram ditas numa emissão da televisão pública marroquina que, em 2016, na véspera do Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, resolveu dedicar um segmento para ensinar a disfarçar as marcas das agressões com maquilhagem. Se isto não bastasse, a apresentadora terminou o segmento dizendo: “esperamos que estas dicas de beleza vos ajudem a seguir com as vossas rotinas diárias”. Este ano, a Associação Sindical de Juízes resolveu organizar um workshop de maquilhagem para o 8 de Março, em que se comemora o Dia Internacional da Mulher.

A maquilhagem da televisão marroquina representou de forma exemplar e repugnante a normalização da violência contra as mulheres. A maquilhagem da Associação Sindical de Juízes procura normalizar o lugar decorativo das mulheres, ignorando os combates que estão para fazer numa sociedade onde a ausência de igualdade de género está na base da violência doméstica que todos os anos continua a matar em Portugal.

Iniciativas como estas são o reflexo do caminho que está por fazer e de quão fácil é retroceder nos direitos já alcançados. A Associação Sindical de Juízes conhece em primeira mão o que falta fazer na justiça para combater a violência doméstica onde continuam a ser ditadas sentenças que atacam mais as vítimas que os agressores. A Associação Sindical de Juízes saberá que, em Portugal, em 2019, foram detidas, por dia, duas pessoas suspeitas de violência doméstica. A Associação Sindical de Juízes saberá que já morreram este ano dez mulheres e uma criança vítimas de violência doméstica. A Associação Sindical de Juízes saberá que mais de 80% dos processos de queixa por violência doméstica são arquivados. A Associação Sindical de Juízes, que tem toda esta informação, decidiu que o que se devia mesmo aprender no Dia Internacional da Mulher era fazer maquilhagem como deve ser.

Pois não. O que está por fazer é mesmo o que aparece no caderno reivindicativo da greve feminista do dia 8 de Março, convocada também para Portugal. Se nada for feito, serão precisas 5 a 6 gerações para que as mulheres saibam o que é uma distribuição igualitária das tarefas domésticas. Serão precisos muitos anos para chegar à igualdade salarial. Será preciso muito trabalho para que a violência doméstica deixe de matar. A justiça portuguesa tem sido uma parte do problema. A Associação Sindical de Juízes sabe-o perfeitamente e não há maquilhagem no mundo que possa disfarçar esta realidade. A melhor resposta será mesmo uma mobilização massiva no dia 8 de Março. Sem disfarces nem apagão das palavras de ordem, que se querem muitas e audíveis.

Oublicado no “Diário de Notícias” - 2 de março de 2019