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Combater a morte má

“O que deveria constituir um momento de maior tranquilidade e serenidade transforma-se, num elevadíssimo número de casos, num suplício, numa tortura, numa violência, numa lenta e sofrida agonia, agravadas pela solidão, o isolamento, a dependência e a degradação física que, de uma forma geral, estão presentes no contexto que acompanha o final das nossas vidas.” Diagnóstico certeiro e preciso este, do João Semedo.

Há muito a fazer para mudar esta morte má em Portugal. A oferta de cuidados paliativos de qualidade e com cobertura nacional pelo Serviço Nacional de Saúde é evidentemente essencial. Mas não nos iludamos: quem invoca que, sem essa cobertura universal, não pode haver despenalização da morte assistida não a aceitará se essa cobertura universal se concretizar. O argumento é instrumental, portanto.

A realidade é o que é. Hoje, quem tem dinheiro, vai à Suíça para que a sua vontade de morrer com serenidade e sem dor, antes que a agonia ou o adormecimento tomem conta do quotidiano, seja respeitada. Aos demais, o Código Penal condena a ter uma sobrevida biológica penosa e violentadora.

O que se decide quinta feira é se, enquanto sociedade, fechamos os olhos a esta realidade e se continuamos a considerar como criminoso um médico que, em consciência, decide ajudar alguém a antecipar a sua morte por respeito para consigo próprio diante da luta perdida, à partida, com o sofrimento.

Na nossa luta de sociedade contra a morte má em Portugal, a despenalização da eutanásia é um passo imprescindível. Essa despenalização responde às pessoas que não se reveem na crença da superioridade da morte “natural” nem se querem despedir da vida envoltos numa nuvem que os priva de manter o diálogo e o afeto todo que é possível com os seus mais queridos. Estas pessoas não podem ser desrespeitadas e não há nenhuma crença nem nenhuma mundividência que o justifique ou legitime.

Esta quinta feira voltamos a enfrentar o medo e a intolerância. Voltamos a decidir se queremos viver numa sociedade que respeita os seus ou se lhes dizemos, como tenho ouvido dizer com tanta crueldade: “olhe, se não quer a lei que temos, pode sempre suicidar-se”.

Por estes dias, penso no testemunho de determinação e de diálogo do João Semedo. Sei que ele tinha toda a razão. E que esta quinta feira esse testemunho estará totalmente presente no que decidiremos.

Publicado no “Diário As Beiras” - 15 de fevereiro de 2020