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A birra da senhora Merkel

O que mudou, afinal? Angela Merkel suspeitou ter tido as suas conversas telefónicas escutadas pelos serviços de segurança norte-americanos e ficou em estado de choque, tendo mesmo telefonado a Obama para pedir explicações. Vai daí, uma cimeira europeia que juntou os primeiros-ministros e chefes de Estado europeus para discutir a política europeia de imigração, a agenda digital europeia, a união bancária e uma política social para a Europa acabou por ser uma cimeira sobre o caso da espionagem norte-americana. É, de facto, grave que os serviços de segurança norte-americanos coloquem sob escuta líderes europeus, mas o problema não começou aí.

Recordemos os factos. Edward Snowden revelou há alguns meses que a NSA espiava os países europeus. Nessa altura, e bem, muitas vozes se levantaram para a imediata suspensão de todas as negociações em aberto com os Estados Unidos. Os líderes europeus afirmaram e reafirmaram que não seria necessário ir tão longe. Afinal, estávamos a falar entre amigos. Um dos casos mais flagrantes é o do acordo de comércio livre entre a União Europeia e os Estados Unidos que está a ser negociado nas costas dos cidadãos. Diga-se, em abono da verdade, que o acordo é, por si só, uma afronta, um instrumento para destruir o que resta do Estado social e dos padrões ambientais europeus, pelo que, para bem de todos/as nós, não deveria nunca ter a oportunidade ver a luz do dia. Mas, até por tudo isso, o mínimo que se esperava das autoridades europeias após estas revelações seria a sua suspensão. Não foi assim que aconteceu. Veio depois o pedido de suspensão do acordo SWIFT – o tal que permite que as entidades europeias enviem para as autoridades norte-americanas o registo de todas as transações bancárias efetuadas no espaço da União ao arrepio de todos os direitos consagrados sobre confidencialidade e proteção de dados. Também não foi esse o entendimento da Comissão de Barroso e dos governos europeus. Valeu, no entanto, a aprovação, esta semana, dessa mesma suspensão num voto efetuado no Parlamento Europeu, apesar da escassa maioria. Como disse, nada disto serviu para condenar a atitude dos Estados Unidos ou para pedir contas. Apenas a birra de Merkel conseguiu trazer o assunto para a agenda dos governos, habituados que estão a curvar perante tudo e perante todos.

O mais triste de tudo isto é que nem este episódio fez colocar ainda a discussão na questão central, e da cimeira saiu a decisão de propor negociações bilaterais entre os Estados Unidos e a França e a Alemanha, respetivamente. Parece anedota, mas não é. Talvez até nem tenha sido mau não aprofundar a discussão sobre a agenda digital europeia, já que parece que podemos continuar a ser alvos de espionagem...

As Beiras, 26 de outubro de 2013