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A abstenção violenta de Cavaco Silva

Temos um Presidente da República que, entre a Constituição de que é garante e o memorando com a troika, escolhe este e hipoteca aquela.

Bem pode o porta-voz do PS louvar a mensagem de ano novo do Presidente por ter deixado Passos Coelho politicamente isolado. Bem podem os opinadores encartados do costume encontrar na dita sinais de descolagem de Belém relativamente a São Bento. Um e outros querem que esqueçamos o essencial: Cavaco Silva é figura de referência das direitas tecnocráticas e dos economistas do deslaçamento social para quem a democracia é um estorvo.

Cavaco Silva é um político profissional. E a sua mensagem de ano novo foi isso mesmo: um exercício de pura política profissional. Daquela que, por dizer uma coisa e o seu contrário, tem conduzido a uma alergia crescente dos portugueses pela política. Do Orçamento do Estado disse que é um alimentador da espiral recessiva que está a destruir a economia portuguesa, que arrasa fiscalmente a população trabalhadora e o tecido empresarial, que é profundamente injusto e, para usar palavras brandas, que "suscita dúvidas" sobre a sua conformidade com os princípios elementares de equidade e não discriminação estatuídos pela Constituição. Isto dito, Cavaco pede desculpa mas promulga o dito horror. Fica claro: Cavaco partilha com Seguro a cultura da abstenção violenta. É o interesse nacional que mo impõe, diz com o ar grave que essa contrariedade requer. Queria não o ter promulgado mas se o não tivesse feito o País afundar-se-ia, seria o caos. E a gente pergunta: mas uma coisa assim tão má como o Presidente da República a pinta não traz o caos agarrado a ela? Um Orçamento tão destruidor não afunda o País? Uma lei com tão grande probabilidade de ser inconstitucional promulga-se e depois logo se vê? É isto um Presidente responsável?

Político profissional com muitos anos de prática, Cavaco Silva faz escolhas a coberto de imperativos gerais, pedindo desculpas por não poder alegadamente fazer outras. Na sua mensagem, Cavaco Silva enunciou com clareza a sua escolha política: repudiará qualquer crise política - leia-se: não quer que se force a demissão do Governo nem que haja eleições - e fará do cumprimento do memorando com a troika o mandamento maior da vida do País. Ora, criticar o Orçamento e fazer a apologia do cumprimento do memorando é uma contradição insanável. O Orçamento é o que é porque o memorando estabelece o que estabelece. O Orçamento do memorando é a crise da política real, mesmo se não houver crise política formal. Mas disso Cavaco Silva não quer saber. O que verdadeiramente lhe causa preocupação é que possa ganhar força a exigência de renegociação da dívida. Porque sabe que é aí que se desmorona a política de que ele é presidente, sabe que é aí que se rompe com a hegemonia da política do embaratecimento do trabalho, da política das privatizações a pataco, da política que rasga o contrato com os cidadãos mas sacraliza o contrato com os credores.

Cumprir o memorando para que tenhamos imagem de bom aluno e os credores possam continuar a financiar uma economia de baixos salários, de baixa qualificação e de direitos mínimos - esse é o desígnio de Cavaco Silva. E para que ele se cumpra, o Presidente toca a reunir. Ao lembrar que o memorando foi assinado por uma constelação partidária que representa 90% do espaço parlamentar, Cavaco põe no centro da política uma fórmula governativa de banda larga para apoio ao memorando da troika, seja com coligação formal ou com outra forma institucional. É a essa escolha de Cavaco que cada partido tem de responder. Alinhando com ela ou combatendo-a. Não há espaço para abstenções. Mesmo violentas.

Diário de Notícias, 4 de Janeiro de 2013